Historicismo que é o processo de recepção e reprodução dos elementos da cultura hip hop entre parte dos jovens, é tentar perceber a construção e o reconhecimento da diferença forjada por eles próprios, através do contado com as diversas representações recebidas desta cultura. Que se constitui em uma luta por reconhecimento, espaço e possibilidades, visto que a juventude que se apropria dos elementos dessa cultura são jovens das periferias das grandes cidades, jovens pobres e esquecidos das políticas públicas, dos processos de integração e constituição identidade nacional e regional. Assim, os fatores étnicos e sociais são cruciais para estabelecimento do lugar que lhes são devidos dentro da estrutura social.
Poderíamos assim, resgatar através do estudo das apropriações de certos elementos estéticos e discursivo, que chegam através de representações da cultura hip hop . Tais representações são produzidas por jovens membros da cultura hip hop; e estas sofrem um processo de internacionalização a partir da década de 1980. A música, o visual, o movimento, a cor, produzidas por jovens e reproduzidas por aqui, através dos meios de comunicação (TV, rádio, jornais, etc.) – mas também por gravações caseiras , chamam a atenção dos jovens que se identificam com aquelas representações.
Enfim, perceber o processo de transformação do “estilo de vida”, que incorpora música, dança, artes plásticas, consumo, reivindicações, que os fazem diferenciar tanto das gerações anteriores, quanto dos jovens contemporâneos. Através de uma identificação que os diferencia. Esta diferença seria, portanto, resultado de uma colonização cultural apregoada, quando fala dos anos 1960 e 1970 acerca da chegada do rock no Brasil e, toda sua carga simbólica e ideológica a serviço dos dominadores Estados Unidos e sua indústria cultural... ou um dialogo entre culturas distintas, em que seus elementos, presentes nas representações, seriam apropriados, reproduzidos, reindustrializados, de forma híbrida, diaspórica, ou seja, não consciencializada, implantada, mas sim, diversa e negociada...
Pele negra x Máscara branca...
Existem diferentes formas de manifestação do racismo. É mais fácil lidar com o racismo aberto, como coloca DALAL (2002), porque é “auto-confesso” e, portanto, visível a todos, do que lidar com o racismo encoberto. No entanto, é problemático precisamente por ser invisível e facilmente negado, tanto de forma consciente como inconsciente. Uma maneira de se revelar o racismo é a evidência estatística. Diga-se de passagem, é sabido que, no Brasil, o racismo é bastante encoberto, em relação a países como os Estados Unidos ou a África do Sul, por exemplo – o que faz com que a categorização das pessoas pelas diferenças “raciais” seja ainda mais latente.
Os brasileiros, em geral, definem as categorias “raciais” baseados principalmente na aparência, e não na ascendência, como fazem os norte-americanos, por exemplo (FRY, 1996). No entanto, é interessante ressaltar uma pesquisa por amostragem realizada por PENA e BORTOLINI (2004) que, baseados em critérios genéticos previamente utilizados, capazes de estimar com precisão o grau de mistura africana e européia de uma população, afirmam que, se toda pessoa com mais de 10% de ancestralidade africana for considerada negro-descendente (classificação arbitrária, como eles próprios assumem), 87% (cerca de 146 milhões de habitantes) dos brasileiros estariam nessa categoria – o que é uma cifra impressionante.
Concluem que mais de 80 milhões de pessoas (ou 54% da população de nosso país) apresentam 90% ou mais de ancestral idade africana. Porém, de acordo com tais autores, 48% dos negro-descendentes brasileiros autoclassificam-se como “brancos” (PENA; BORTOLINI, 2004). Assim, muitos cidadãos que poderiam ser tranqüilamente classificados como “negros” ou “pardos” acreditando serem “brancos”. É um sinal lógico de que há vantagens em ser “branco” no Brasil, pois provavelmente esse cidadão sente-se mais aceito na sociedade se considerado como tal. Caso contrário, simplesmente se auto-classificariam como negros.
Assim, os negro-mestiços estão bem mais próximos, em geral, do negro, em termos de posição financeira, educacional e social (SANTOS, 2001). Parece-me uma situação perversa por parte das elites: por um lado, querem o embranquecimento do Brasil para que não sejamos vistos como um país de “pretos”, como se isso fosse naturalmente negativo. Por outro, os “mulatos”, mesmo que claros, têm um lugar reservado com os, de fato, “negros”: a senzala ou a periferia da sociedade – ou da cidade. Trata-se de um lugar simbólico e concreto ao mesmo tempo: no plano do poder aquisitivo e no da discriminação.
Os resultados de minha recente pesquisa mostram, como procurarei apontar brevemente no presente artigo, que o hip hop vem justamente ao encontro dessa postura: manifestação essencialmente da periferia excluída, traz o que é inconsciente para a consciência, que pode, então, se reestruturar continuamente, a fim de assimilar aspectos até então relegados, e levá-los às ações e interações mais discriminadas (SCANDIUCCI, 2005).
Os complexos da “alma brasileira...”
Para JUNG (1934, 1995), dentro do que ele chamou de “processos psíquicos complicados”, emergem possibilidades ilimitadas que, às vezes, já desde o início, dão origem a uma situação de experiência que pode ser chamada de constelação.
“Este termo exprime o fato de que a situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos. A expressão ‘está constelado’ indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida” (JUNG, 1934/1995, p. 29).Ora, esses conteúdos constelados são chamados de complexos; não podem ser detidos pela vontade da pessoa, pois apresentam energia específica própria, superando, muitas vezes, nossas intenções conscientes. Os complexos podem “ter-nos”, portanto, de acordo com JUNG (1934, 1995), atuando como uma espécie de segundo “eu”.
Dessa forma, o “complexo afetivo” pode ser definido como uma imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional. Além disso, pode ser incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência. Assim, o complexo tem elevado grau de autonomia. Pode ser reprimido, mas não negado enquanto existência, pois, em ocasião favorável, volta à tona com toda a sua força original (JUNG, 1934/1995).
O lugar do hip hop na sociedade brasileira...
O aspecto geográfico ou espacial parece ser de extrema importância no que tange ao enraizamento da cultura. De acordo com esses depoimentos, percebe-se que o hip hop tem maior poder de entrada na camada pobre das cidades. Não é à toa que muitas letras de rap aludem ao bairro, à “quebrada” de origem de seus componentes.
O grupo Z’África Brasil (2002), através do rap “Antigamente quilombos, hoje periferia” passa, a meu ver, a noção de que a periferia teria uma correspondência com os quilombos dos tempos da escravidão. Isto é, um espaço da população pobre “escravizada”, que ao mesmo tempo carrega uma luta e uma resistência à exploração dos “patrões”. É nela que se encontram as pessoas mais sofredoras, é nela que uma revolta contra um sistema injusto pode aparecer.
CARRIL (2003) enxerga, neste rap, uma analogia entre o capitalismo atual e aquele que estimulou a entrada de africanos no Brasil colonial, a fim de abastecer de mão-de-obra seu mercado. No contexto de “hoje”, o Z’África Brasil produz uma imagem de uma nova resistência do negro, aludindo às “guerras” nos territórios das periferias – uma “terra de ninguém” e do negro: um novo quilombo.
Se liga...
Acredito que defender a ideia de pode-se afirmar que o hip hop e o rap funcionam como canais expressivos de símbolos ao darem possibilidade de “fala” à juventude negra. Ao abrir espaço para a expressão de elementos reprimidos, pertencentes às relações sociais, atuam como função compensatória no self cultural. Ao realizar tal elaboração simbólica, ocorre uma ampliação da consciência diante dos mecanismos inconscientes que atuam no bojo das experiências de cada indivíduo.
Um afro abraço.
REBELE-SE CONTRA O RACISMO!
fonte:DIAS, L. & GAMBINI, R. Outros 500: uma conversa sobre a alma brasileira. Editora Senac, 1999. ao Departamento de Ciências Sociais, 1995, p. 10. xii Dissertação defendida junto ao programa de Mestrado do Departamento de História da Universidade Federal de Goiás em 1999. xiii Sobre a virada ocorrida no seio da ciência histórica ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. xiv Cf. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Trad. Tomaz T. e Silva, Guacira L. Louro. 6ª ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2001. xv Op. Cit., 2001, p. 75. xvi Representação que marca uma presença, porém distinta daquilo que é representado. São componentes de uma realidade social , “uma vez que são produtoras de ordenamento, de afirmação de distâncias, de divisões, a orientar a ação dos agentes”. Estas são inscritas “nos textos” ou são “produzidas pelos indivíduos”, e sempre determinadas pelos interesses do grupo que as forjam. (...) daí para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. Cf. CHARTIER, Roger. Introdução: Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1990; HUNT, Lyn. A nova história cultural. São Paulo: Martins.
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