"Em 06 de novembro de 1836, líderes dos farrapos no Rio Grande do Sul proclamam a República Piratini. Oficiais revolucionários reunidos na Câmara de Piratini elegem Bento Gonçalves presidente da República. Os oficiais de três brigadas elegem João Manoel de Lima e Silva general e comandante das armas."
A Farroupilha, ou Guerra dos Farrapos, foi a mais longa rebelião do período regencial, durando dez anos. Circunstâncias históricas, sociais e econômicas, como também a estreita relação que os gaúchos mantinham com o Uruguai, contribuíram para que o sul conservasse certa autonomia em relação ao governo do Império.
Os motivos da revolta foram vários, mas o principal foi a insatisfação dos gaúchos com os impostos excessivos e a taxação do gado na fronteira uruguaia, que dificultava a circulação dos rebanhos entre os dois países. No lado político, havia o ressentimento com relação à nomeação direta dos presidentes de província pelo poder central.Em 1836, os gaúchos promulgaram a separação da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul do território do Império, iniciando uma luta engendrada pela ocupação econômica da região. Em 1838, proclamaram a República Rio Grandense ou República de Piratini, estendendo o movimento no ano seguinte a Santa Catarina, proclamando a República Catarinense ou República Juliana. A revolta terminou em 1845; quando Caxias pacificou a província, vencendo os grupos rebeldes e estabelecendo, novamente, a ordem política do Império. Um acordo definitivo concedeu aos farrapos anistia irrestrita e recursos para saldar as dívidas contraídas durante a guerra.
Meses finais da Guerra dos Farrapos. Madrugada de 14 de novembro de 1844. Tropas imperiais comandadas pelo coronel Francisco Pedro de Abreu (1811-1891), o Moringue, atacam soldados farroupilhas que estavam acampados nas imediações do Cerro de Porongos, no atual município de Pinheiro Machado, no estado do Rio Grande do Sul, resultando na morte e na prisão de muitos. Em sua maioria, eram lanceiros negros, escravos que lutavam no exército farroupilha em troca da promessa de alforria. Anos depois, a divulgação de um documento que ficaria conhecido como Carta de Porongos, revelando um suposto acordo entre lideranças militares para dizimar esses lanceiros, inicia uma controvérsia que gera polêmica até hoje.
Para arregimentar soldados, os farroupilhas incorporaram escravos às suas fileiras, prometendo em troca a liberdade após o fim do conflito. De olho na alforria, alguns negros fugiram das propriedades onde eram mantidos escravos para aderir à luta. Outros foram cedidos por senhores de terra que apoiavam a revolução. Já senhores contrários ao movimento podiam ter seus escravos capturados à força, como aconteceu nas charqueadas – propriedades rurais onde se produz o charque (carne salgada) – de Pelotas.
Estima-se que em alguns momentos os lanceiros negros, como ficaram conhecidos estes soldados, tenham representado metade do exército rio-grandense. O africano José, de nação angola, foi um desses homens que sonharam em conquistar a liberdade pegando em armas. Em dezembro de 1837, José foi preso e interrogado pelas autoridades imperiais em Porto Alegre, informando que quase toda a “infantaria dos brancos” já havia desertado e que naquele momento os combatentes seriam quase exclusivamente “pretos, uns com armas e outros com lanças”. Estas eram as principais armas do conflito, já que as de fogo ficaram restritas a uma minoria. Além disso, pelo próprio caráter de guerra móvel, muitas vezes os lanceiros negros entravam nos batalhões sem maiores treinamentos.
No final da década de 1850, o político, charqueador e ex-líder farroupilha Domingos José de Almeida (1797-1859) denunciou publicamente o conteúdo da correspondência que teria sido enviada pelo então barão de Caxias (1803-1880) a Francisco Pedro de Abreu. A Carta de Porongos conteria evidências de um acordo prévio entre Caxias (comandante do Exército imperial no conflito) e o líder farroupilha Davi Canabarro (1796-1867). O objetivo seria favorecer a vitória imperial no combate do Cerro de Porongos. Em determinado trecho, Caxias informaria a Francisco Pedro o local, o dia e o horário para o ataque, garantindo-lhe que a infantaria farroupilha estaria desarmada pelos seus líderes.
A partir de então, o Combate de Porongos gerou uma acalorada controvérsia entre os historiadores e estudiosos que se debruçaram sobre o tema da Guerra dos Farrapos. Com base na Carta de Porongos, surgiram acusações de que o general Davi Canabarro – comandante do destacamento de negros – teria traído a causa farroupilha ao desarmar e facilitar a derrota dos lanceiros. Essa atitude teria como objetivo facilitar a assinatura do tratado de paz que vinha sendo negociado, já que o governo imperial era contra a ideia farroupilha de conceder a alforria aos escravos que lutaram como soldados. Por outro lado, negar a liberdade e mandar os lanceiros de volta às senzalas era algo não cogitado nem por alguns farroupilhas, devido ao temor de que um grande contingente de escravos militarizados, politizados e insatisfeitos com o não cumprimento da prometida alforria insuflasse levantes – a quantidade de escravos na província do Rio Grande do Sul em 1846, um ano após o término da Guerra dos Farrapos, correspondia a 20,9% da população.
Relatos da época, como o de Manuel Alves da Silva Caldeira, farroupilha presente em Porongos, afirmam que Canabarro teria sido avisado da aproximação de tropas inimigas e, mesmo assim, não teria tomado providência alguma. Pelo contrário, teria propositalmente desarmado e separado os lanceiros do resto das tropas acampadas perto do Cerro de Porongos. Dando crédito a estes argumentos, o episódio teria sido uma traição aos soldados negros.
A autenticidade da Carta de Porongos, no entanto, é questionada por alguns estudiosos, já que a versão que se tornou pública é uma cópia, e a original nunca foi encontrada. Uma das explicações é que o documento teria sido forjado pelo coronel Francisco Pedro de Abreu após o combate para desmoralizar Canabarro, único chefe farroupilha que ainda teria condições de reaglutinar as desgastadas forças rebeldes. Félix de Azambuja Rangel, subordinado ao coronel Francisco Pedro, afirma ter presenciado o momento em que seu comandante levou a carta para Caxias assinar e em seguida distribuir cópias entre os adversários. Por essa versão, os lanceiros negros não teriam sido traídos, e sim pegos de surpresa pelas tropas imperiais, assim como seus comandantes.
Parece haver consenso entre os pesquisadores de que os lanceiros foram atacados em condições extremamente desfavoráveis, com inferioridade de armamentos, e que acabaram eliminados em quantidade considerável.
Somente nos últimos anos a importância e a dimensão da participação negra neste conflito têm recebido maior atenção. Hoje é possível afirmar com segurança que negros, índios e mestiços desempenharam papel fundamental na Guerra dos Farrapos não somente como soldados, mas também trabalhando em diversos outros setores importantes da economia de guerra, como nas estâncias de gado, na fabricação de pólvora e nas plantações de fumo e erva-mate cultivadas pelos rebeldes.
Apesar das promessas, em nenhum momento a República Rio-Grandense libertou seus escravos. A questão da abolição era controversa entre seus líderes. Ao mesmo tempo em que o governo rebelde prometia liberdade aos escravos engajados e condenava a continuidade do tráfico de escravos, seu jornal oficial, O Povo, estampava anúncios de fugas de cativos. Houve uma tentativa de abolição por meio de projeto apresentado na Assembleia Constituinte de 1842 por José Mariano de Mattos (1801-1866), que foi recusado. Anos após o fim do conflito, vários líderes farroupilhas ainda tinham escravos, como Bento Gonçalves (1788-1847), que morreu deixando 53 cativos para seus herdeiros.
O destino dos lanceiros negros no fim do conflito também é tema controverso. As negociações de paz, que resultaram na assinatura do Tratado de Ponche Verde em 1845, definiram que os escravos ainda engajados deveriam ser entregues ao barão de Caxias e reconhecidos como livres pelo Império. Sabe-se que, juntamente com outro grupo feito prisioneiro em batalhas, foram enviados ainda em 1845 para o Rio de Janeiro na condição de libertos, como noticiaram o Jornal do Comercio e o Diário do Rio de Janeiro de 26 de agosto daquele ano. Se de fato receberam a liberdade ao chegarem a seu destino, não se tem certeza. O ex-farroupilha Manuel Caldeira levantou suspeitas de que tenham sido novamente escravizados e levados para a Fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, agora como propriedade do Estado.
Alguns soldados negros podem ainda, ao longo do conflito, ter escapado para o Uruguai, formado quilombos ou mesmo buscado refúgio nas cidades, onde tentaram se passar por homens livres. Muitos permaneceram escravos no próprio Rio Grande do Sul. Um sobrinho-neto do general Antônio de Souza Netto (1801-1866) relata que, após a batalha de Porongos, uma parte dos lanceiros negros teria acompanhado seu antepassado farroupilha até sua propriedade no Uruguai, e que descendentes destes soldados viveriam até hoje nessa área rural conhecida como Estância “La Gloria”, na região de Paissandu.
fonte:Vinicius Pereira de Oliveira é autor de De Manoel Congo a Manoel de Paula: um africano ladino em terras meridionais (EST Edições, 2006); Cristian Jobi Salaini é autor da dissertação “Nossos heróis não morreram: um estudo antropológico sobre as formas de ‘ser negro’ e de ‘ser gaúcho’ no estado do Rio Grande do Sul” (UFRGS, 2006). CARRION, Raul K. M. “Os lanceiros negros na Guerra dos Farrapos”. In: Ciências e Letras nº 37, jan. 2005portoAlegre:FaculdadePorto-Alegrensede ducação./www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/escravos-farrapo
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