Muitos anos depois do seu assassinato, a figura de Amílcar Cabral continua presente. As suas imagens, em particular no cinema, ganham novo destaque ao recuperarem-se episódios da luta de libertação. Ao mesmo tempo, novas investigações desdobram o seu percurso, dos seus primeiros escritos aos paralelismos com Frantz Fanon e outros combatentes. Finalmente, o nome de Cabral é hoje um ponto de passagem de novas lutas políticas, agora desenvolvidas num quadro pós-colonial, mas respondendo ainda a desafios que encontram nos seus escritos e na sua prática política um acervo valioso
.LARBAC, POETA E CONTISTA
.LARBAC, POETA E CONTISTA
Juvenal Cabral, à luz difusa de um candeeiro, escreve na sua casa em Cabo Verde um memorando a Vieira Machado, ministro das Colónias de Salazar.
Está-se em Dezembro de 1941 e o ministro visita a Praia. O documento chegará às mãos do membro do Governo de Lisboa. Que, muito provavelmente, não o leu. Que lhe importa as opiniões de um obscuro professor primário cabo-verdiano?
No entanto, o documento é significativo. Preocupado com a seca e a fome no seu arquipélago, Juvenal propõe ao ministro algumas políticas a seguir para minorar os males: pesquisa e captação de águas, arborização intensiva, protecção à agricultura, supressão do imposto sobre as terras, criação de um crédito agrícola, protecção ao pequeno funcionário.
Seu filho, Amílcar, tem 17 anos e frequenta o liceu no Mindelo. Não se sente ainda com capacidade para auxiliar o pai na cruzada em favor de Cabo Verde. Mas já conhece todos os problemas que afectam a sua terra, porque o pai, desde cedo, o consciencializa.
Todavia, Amílcar é, nessa altura, Larbac. Assim assina os poemas de amor que escreve:Quando Cupido acerta no alvo, Devaneios, Arte de Minerva, entre outros. Os temas denotam influências clássicas. Os poetas que conhece do liceu são os inspiradores: Gonçalves Crespo, Guerra Junqueiro, Casimiro de Abreu, por exemplo. O lirismo de Amílcar (Larbac é anagrama de Cabral) não se evidencia pela originalidade. Revela, porém, a sua sensibilidade amorosa. Esse romantismo passa para a sua prosa de adolescente, os contos, notas e comentários onde se vislumbra já um seguro conhecimento e um desejo de participação no universo insular em que vive. Um pouco mais tarde, em Lisboa, essas preocupações irão agudizar-se.
GUERRA, SECAS E FOME
"Ele nasceu com a política na cabeça. Era filho de político. Juvenal falava-lhe de todas as coisas". São palavras, em 1976, um ano antes da sua morte, de Dona Iva Pinhel Évora, mãe de Amílcar, mulher de Juvenal Lopes Cabral.
Memórias e Reflexões, editado pelo autor, em 1947, é um curioso livro do pai de Amílcar em que rememora a sua vida, debate os problemas da época e dos meios em que viveu, anota factos e episódios que clarificam a História e esclarecem as origens sociais do futuro líder do PAIGC.
Juvenal nasce em Cabo Verde em 1889. Um dos avós é grande proprietário rural. Mas a fortuna desaparece depressa, perante as catástrofes naturais das ilhas. O outro avô, o paterno, homem culto, também com algumas posses, dá ao neto o nome de Juvenal, em
homenagem ao poeta latino. O rapaz não conhece o pai, morto tragicamente quando tem dois meses. A criança é entregue aos cuidados do avô e, mais tarde, da madrinha, Simoa Borges, que lhe irá financiar os estudos. Primeiro, em Portugal, no Seminário de Viseu. Estava destinado à vida eclesiástica. Mas uma grande seca no princípio do século torna impossível a manutenção de Juvenal na metrópole. Volta ao arquipélago. Em 1906, está a frequentar o seminário de S. Nicolau. Aos dezoito anos, abandona os estudos e embarca para a Guiné à procura de emprego. É funcionário em Bolama, depois professor sem diploma.
Vive em Bafatá quando, a 12 de Setembro de 1924, nasce Amílcar Cabral. Que, na certidão de nascimento, surge com o nome de Hamílcar, homenagem prestada pelo pai ao célebre cartaginês Hamílcar Barca.
Mas, em 1932, morre a madrinha Simoa que lhe deixa algumas propriedades rurais em Cabo Verde. Juvenal, Iva e Amílcar regressam às ilhas. É aí que a família vive o período difícil da Segunda Guerra Mundial. Salazar sobe os custos de vida, as mercadorias rareiam. Em 1940, uma calamitosa seca provoca a fome. Morrem mais de 20 mil cabo-verdianos. E, entre 1942 e 1948, nova crise vai fazer 30 mil vítimas.
Entretanto, nas ilhas, há um forte contingente militar de tropas portuguesas, o que cria inúmeros conflitos com a população e acentua o racismo e o colonialismo. Para além da fome e da seca não há, praticamente, serviços de assistência pública. A emigração para S. Tomé e Angola e, posteriormente, para a América despovoa as ilhas.
Nunca se calou Juvenal. Em 1940, dirige ao governador um memorando em que, baseado em dados históricos, prediz uma grande seca para os anos seguintes (o que se confirmou). Surgirá, depois, o documento enviado ao ministro das Colónias. (Este terrível período de calamidades em Cabo Verde é magistralmente descrito no romance de Manuel Ferreira, Hora di Bai).
Neste contexto, Amílcar Cabral passa a infância e a adolescência. Se o pai lhe aponta um exemplo de consciência e actuação, dentro das limitações legais que o fascismo de Salazar permite, a mãe, Iva Évora, é, para o jovem, o exemplo da ternura, da protecção e do trabalho. Presa todo o dia à máquina de costura, Iva vai contribuindo para que a família vença, da melhor maneira, as crises por que passam. E, mais tarde, sem largar a costura, empregar-se-á numa fábrica de conserva de peixe. A mãe e a sua capacidade de sacrifício há-de servir a Amílcar de testemunho de luta aos jovens combatentes do PAIGC.
Aos 20 anos, Amílcar tem absoluta consciência das degradantes condições de vida do povo cabo-verdiano. Imbui-o um idealismo político, a certeza dos amanhãs que cantam, a inevitável transformação do mundo, a nova ordem emergente do caos pós-guerra.
Aluno brilhante, 17 valores numa escala de 18, Amílcar conclui o curso liceal. Vai para a Praia onde se emprega como aspirante na Imprensa Nacional, enquanto aguarda a concessão de uma bolsa para prosseguir os estudos. Finalmente, em 1945, embarca para Lisboa.
A escolha da sua formação universitária, em que terá, também, havido cumplicidade do pai, é óbvia: será engenheiro agrónomo.
fonte:www.vidaslusofonas.pt/amilcar_cabral.htm
Está-se em Dezembro de 1941 e o ministro visita a Praia. O documento chegará às mãos do membro do Governo de Lisboa. Que, muito provavelmente, não o leu. Que lhe importa as opiniões de um obscuro professor primário cabo-verdiano?
No entanto, o documento é significativo. Preocupado com a seca e a fome no seu arquipélago, Juvenal propõe ao ministro algumas políticas a seguir para minorar os males: pesquisa e captação de águas, arborização intensiva, protecção à agricultura, supressão do imposto sobre as terras, criação de um crédito agrícola, protecção ao pequeno funcionário.
Seu filho, Amílcar, tem 17 anos e frequenta o liceu no Mindelo. Não se sente ainda com capacidade para auxiliar o pai na cruzada em favor de Cabo Verde. Mas já conhece todos os problemas que afectam a sua terra, porque o pai, desde cedo, o consciencializa.
Todavia, Amílcar é, nessa altura, Larbac. Assim assina os poemas de amor que escreve:Quando Cupido acerta no alvo, Devaneios, Arte de Minerva, entre outros. Os temas denotam influências clássicas. Os poetas que conhece do liceu são os inspiradores: Gonçalves Crespo, Guerra Junqueiro, Casimiro de Abreu, por exemplo. O lirismo de Amílcar (Larbac é anagrama de Cabral) não se evidencia pela originalidade. Revela, porém, a sua sensibilidade amorosa. Esse romantismo passa para a sua prosa de adolescente, os contos, notas e comentários onde se vislumbra já um seguro conhecimento e um desejo de participação no universo insular em que vive. Um pouco mais tarde, em Lisboa, essas preocupações irão agudizar-se.
GUERRA, SECAS E FOME
"Ele nasceu com a política na cabeça. Era filho de político. Juvenal falava-lhe de todas as coisas". São palavras, em 1976, um ano antes da sua morte, de Dona Iva Pinhel Évora, mãe de Amílcar, mulher de Juvenal Lopes Cabral.
Memórias e Reflexões, editado pelo autor, em 1947, é um curioso livro do pai de Amílcar em que rememora a sua vida, debate os problemas da época e dos meios em que viveu, anota factos e episódios que clarificam a História e esclarecem as origens sociais do futuro líder do PAIGC.
Juvenal nasce em Cabo Verde em 1889. Um dos avós é grande proprietário rural. Mas a fortuna desaparece depressa, perante as catástrofes naturais das ilhas. O outro avô, o paterno, homem culto, também com algumas posses, dá ao neto o nome de Juvenal, em
homenagem ao poeta latino. O rapaz não conhece o pai, morto tragicamente quando tem dois meses. A criança é entregue aos cuidados do avô e, mais tarde, da madrinha, Simoa Borges, que lhe irá financiar os estudos. Primeiro, em Portugal, no Seminário de Viseu. Estava destinado à vida eclesiástica. Mas uma grande seca no princípio do século torna impossível a manutenção de Juvenal na metrópole. Volta ao arquipélago. Em 1906, está a frequentar o seminário de S. Nicolau. Aos dezoito anos, abandona os estudos e embarca para a Guiné à procura de emprego. É funcionário em Bolama, depois professor sem diploma.
Vive em Bafatá quando, a 12 de Setembro de 1924, nasce Amílcar Cabral. Que, na certidão de nascimento, surge com o nome de Hamílcar, homenagem prestada pelo pai ao célebre cartaginês Hamílcar Barca.
Mas, em 1932, morre a madrinha Simoa que lhe deixa algumas propriedades rurais em Cabo Verde. Juvenal, Iva e Amílcar regressam às ilhas. É aí que a família vive o período difícil da Segunda Guerra Mundial. Salazar sobe os custos de vida, as mercadorias rareiam. Em 1940, uma calamitosa seca provoca a fome. Morrem mais de 20 mil cabo-verdianos. E, entre 1942 e 1948, nova crise vai fazer 30 mil vítimas.
Entretanto, nas ilhas, há um forte contingente militar de tropas portuguesas, o que cria inúmeros conflitos com a população e acentua o racismo e o colonialismo. Para além da fome e da seca não há, praticamente, serviços de assistência pública. A emigração para S. Tomé e Angola e, posteriormente, para a América despovoa as ilhas.
Nunca se calou Juvenal. Em 1940, dirige ao governador um memorando em que, baseado em dados históricos, prediz uma grande seca para os anos seguintes (o que se confirmou). Surgirá, depois, o documento enviado ao ministro das Colónias. (Este terrível período de calamidades em Cabo Verde é magistralmente descrito no romance de Manuel Ferreira, Hora di Bai).
Neste contexto, Amílcar Cabral passa a infância e a adolescência. Se o pai lhe aponta um exemplo de consciência e actuação, dentro das limitações legais que o fascismo de Salazar permite, a mãe, Iva Évora, é, para o jovem, o exemplo da ternura, da protecção e do trabalho. Presa todo o dia à máquina de costura, Iva vai contribuindo para que a família vença, da melhor maneira, as crises por que passam. E, mais tarde, sem largar a costura, empregar-se-á numa fábrica de conserva de peixe. A mãe e a sua capacidade de sacrifício há-de servir a Amílcar de testemunho de luta aos jovens combatentes do PAIGC.
Aos 20 anos, Amílcar tem absoluta consciência das degradantes condições de vida do povo cabo-verdiano. Imbui-o um idealismo político, a certeza dos amanhãs que cantam, a inevitável transformação do mundo, a nova ordem emergente do caos pós-guerra.
Aluno brilhante, 17 valores numa escala de 18, Amílcar conclui o curso liceal. Vai para a Praia onde se emprega como aspirante na Imprensa Nacional, enquanto aguarda a concessão de uma bolsa para prosseguir os estudos. Finalmente, em 1945, embarca para Lisboa.
A escolha da sua formação universitária, em que terá, também, havido cumplicidade do pai, é óbvia: será engenheiro agrónomo.
ANTI-COLONIALISTA EM LISBOA
Amílcar Cabral chega a Portugal em 1945. É o ano da grande esperança para os democratas portugueses, depressa desfeita quando Salazar garante a condescendência dos vencedores da Segunda Guerra Mundial e mantém, inalterável e apoiado, o regime de ditadura.
A primeira mulher de Amílcar, Maria Helena de Athayde Vilhena Rodrigues, foi sua colega no Instituto de Agronomia. Narrou assim a Mário de Andrade o conhecimento do futuro marido, de quem viria a ter duas filhas, Iva Maria e Ana Luísa:
"Conheci Amílcar no primeiro ano de Agronomia, em 1945. As aulas tinham começado em Novembro, ele chegou em Dezembro (...) Eu não pertencia ao seu grupo, mas lembro-me perfeitamente de o ver entre os outros colegas. Como ele era o único negro, notava-se bem... Amílcar não fizera o exame de admissão à Universidade (...) toda a gente falava dele, elogiava a sua inteligência e ele, para mais, era simpático e descontraído. No que respeita às suas actividades políticas, lembro-me que os meus camaradas recolhiam assinaturas de adesão aos movimentos democráticos. E Amílcar participava activamente nesses comités de estudantes antifascistas. Aquando das assembleias era ele quem dirigia as discussões porque se exprimia muito bem (...) No princípio do terceiro ano, em Outubro de 1948, pertencemos à mesma turma, a dos únicos vinte e cinco estudantes que tinham passado nos exames".
Condiscípulos e amigos recordam Amílcar como um indivíduo de dinamismo contagiante, grande sentido de humor, com enorme capacidade de criar amizades. Sedutor, atrai afectos femininos com facilidade.
"Era o mais bem vestido e aprumado de todos nós", lembra seu amigo, o jornalista Carlos Veiga Pereira.
"O meu irmão conseguia fazer amizades em todo lado", diz Luís Cabral. "Foi pela simpatia de Amílcar — revelou em entrevista ao "Diário Popular" o primeiro presidente da República da Guiné-Bissau — que os soviéticos nos forneceram os mísseis com que controlámos a aviação portuguesa. O magnata italiano Perelli era seu amigo e deu-nos as fardas de oficiais que usávamos. Tudo por amizade e simpatia".
O estudo, a militância, os namoros, ainda lhe deixam tempo para se dedicar ao seu desporto preferido: o futebol.
E, segundo as crónicas, caso o tivesse querido poderia ter feito carreira. De tal maneira dá nas vistas na equipa de Agronomia que o Benfica chega a convidá-lo para ingressar no clube. Mas Amílcar declina a proposta e mantém-se apenas nos "pelados" universitários.
Durante os anos de estudo um irresistível apelo o toma, bem como a outros estudantes negros: era necessário o regresso a África. Não só pela família que ama profundamente, mas porque "milhões de indivíduos têm necessidade da minha contribuição na luta difícil que travam contra a natureza e os próprios homens (...) Lá, em África, apesar das cidades modernas e belas da costa, há ainda milhares de seres humanos que vivem nas mais profundas trevas". Em 1949, escreverá: "Vivo intensamente a vida e dela extraí experiências que me deram uma direcção, uma via que devo seguir, sejam quais forem as perdas pessoais que isso me ocasione. Eis a razão de ser da minha vida".
Esta vida a que se refere, partilha-a, em Lisboa, no Instituto de Agronomia, na Casa dos Estudantes do Império e nos livros que lhe abrem os horizontes de compreensão do mundo do seu tempo. Entre esses livros um será determinante: a Anthologie de la nouvelle poésie négre et malgache, organizada por Léopold Sédar Senghor. Este livro traz-lhe a certeza que "o negro está a despertar em todo o mundo". Teoriza sobre o cabo-verdiano — o homem resultante da fusão dos primeiros habitantes do arquipélago, brancos e negros. Já então reconhece que o número de mestiços é seis vezes superior ao dos brancos e três vezes ao dos negros — do ponto de vista psíquico há um "espírito cabo-verdiano", existe a cabo-verdianidade. Esta profissão de fé tem de ser harmonizada com a militância. No quinto ano do curso, Amílcar volta ao arquipélago para passar as férias grandes. A sua especialidade técnica - a erosão dos solos - e a cultura geral de que dispõe, quer transmiti-las e ensiná-las aos cabo-verdianos. Na Praia, pronuncia, através do Rádio Clube de Cabo Verde, várias palestras sobre as características do solo das ilhas. Apesar das dificuldades, reconhece que a agricultura é a base da economia de Cabo Verde. Para tal, é necessário elucidar, esclarecer, consciencializar o homem da rua. Amílcar coloca o problema da elite na sociedade. É preciso criar uma vanguarda intelectual que leve ao cabo-verdiano anónimo toda a informação sobre os seus problemas tradicionais. Como dirá: "Os quadros devem esclarecer aqueles que vivem na ignorância".
Esta informação deve ultrapassar os limites de Cabo Verde e tornar-se uma informação global que se alargue a todo o mundo. Eis a sua tarefa de militante: consciencializar os cabo-verdianos.
Mas as autoridades portuguesas rapidamente lhe proíbem o acesso à rádio. Como lhe proíbem que ministre um curso nocturno na Escola Central da Praia.
"Dar a conhecer Cabo Verde aos cabo-verdianos" corresponde ao que acontece em Angola: "Partamos à descoberta de Angola" é a divisa de um grupo de jovens intelectuais em torno do poeta Viriato da Cruz.
De novo em Lisboa, Amílcar firma os laços que o unem a outros estudantes originários das colónias portuguesas. Trata-se de um grupo de jovens, provenientes da pequena burguesia urbana africana, todos conscientes da revolta contra o colonialismo e detentores da vantagem de possuírem instrução e cultura. Militam nas organizações da juventude democrática portuguesa, o MUD Juvenil, o Movimento para a Paz. Com uma bandeira que os diversifica dos europeus: a reafricanização dos espíritos, diz Amílcar Cabral. Esta reprocura da identidade leva à criação, em casa da família Espírito Santo (de que é figura proeminente a santomense Alda Espírito Santo), de um Centro de Estudos Africanos. Ali se discutem, apesar das incursões da PIDE, algumas das questões mais prementes da África sob a domínio português. Amílcar tem nesses debates uma participação decisiva.
O PAIGC E O INÍCIO DA LUTA ARMADA
Após terminar o curso, em 1950, faz estágio na Estação Agronómica de Santarém. Pouco depois, falece Juvenal Cabral. Em 1952, Amílcar regressa a África, a Bissau, contratado pelos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné Portuguesa.
Aos 28 anos desembarca em Bissau um engenheiro agrónomo que tem em mira outros fins que não só os da sua profissão (onde, aliás, será sempre de grande competência). O principal desses fins: consciencializar as massas populares guineenses. Como escreverá na comunicação aos quadros, em plena luta de libertação, em 1969: "Não foi por acaso que viemos para a Guiné. Nenhuma necessidade material determinava o nosso regresso ao país natal. Tudo foi calculado, passo a passo. Tínhamos enormes possibilidades de trabalhar nas outras colónias portuguesas e mesmo em Portugal. Abandonámos um bom lugar de investigador na Estação Agronómica para virmos para um lugar de engenheiro de segunda classe na Guiné (...) Isto obedeceu a um cálculo, a um objectivo, à ideia de fazer qualquer coisa, de contribuir para o levantamento do povo, para lutar contra os portugueses. É isso que temos feito desde o primeiro dia em que chegámos à Guiné".
O "Engenheiro", como lhe chamarão os compatriotas, está na melhor das posições para levar a cabo a tarefa de consciencialização. No posto agrícola de Pessubé, que dirige, contacta com os trabalhadores rurais entre os quais cabo-verdianos. É difícil a unidade entre estes e os guineenses para a constituição de uma luta comum. Será difícil até ao fim, apesar de alguns cabo-verdianos (Aristides Pereira, Fernando Fortes, Abílio Duarte, entre outros) se unirem à sua volta. O trabalho político segue a par da actividade profissional. Encarregado da planificação e execução do recenseamento agrícola da Guiné, o relatório que elabora continua a ser hoje o primeiro dado valorizável para o conhecimento da agricultura guineense.
A princípio, Amílcar Cabral procura agir na legalidade. Redige os estatutos de um Clube desportivo e cultural ao qual podem aderir todos os guineenses. As autoridades portuguesas não o autorizarão a funcionar porque a maioria dos signatários não possui bilhete de identidade.
Em 1955, o governador Melo e Alvim obriga Cabral a deixar a Guiné, embora lhe permita voltar uma vez por ano, por razões familiares.
1955 é o ano da Conferência de Bandung que assinala o nascimento do Movimento dos Não-Alinhados, do final da primeira guerra de independência do Vietname, da passagem à luta armada da FNL argelina. E Amílcar Cabral transferido para Angola, trabalha em Cassequel, como engenheiro... e tomando contacto activo com os fundadores do MPLA, ao qual se liga, desde início.
Numa das suas passagens por Bissau, a 19 de Setembro de 1959, Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, Júlio de Almeida, Fernando Fortes e Elisée Turpin criam o Partido Africano da Independência/União dos Povos da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Obviamente, um partido clandestino, que só deixará de o ser quatro anos mais tarde, quando instalar a sua delegação exterior em Conacri.
Nesse período, a actividade de Amílcar Cabral é esgotante. Continuando os seus estudos fitossanitários e agrológicos, viaja frequentemente entre Portugal, Angola e Guiné.
Em Novembro de 1957 participa em Paris numa reunião para o desenvolvimento da luta contra o colonialismo português, mantém contactos com os anti-colonialistas em Lisboa, está em Accra num encontro pan-africano e vai a caminho de Luanda quando ocorre o massacre de Pidjiguiti. Em Janeiro de 1960 vai à II Conferência dos povos africanos, em Tunis, em Maio está em Conacri. Ainda neste ano, em Londres, denuncia numa conferência internacional, pela primeira vez, o colonialismo português. Mas aí, como durante todos os anos de luta, sublinha com ênfase não estar contra o povo português. O seu combate é, em exclusivo, contra o sistema colonial.
Hoje, as investigações históricas e os depoimentos de muitos intervenientes da época mostram que líder do PAIGC sempre se disponibilizou para negociações com o Governo português, nunca aceites pelo regime da ditadura.
Entre 1960 e 1962, o PAIGC actua a partir da República da Guiné. Essa actuação desenvolve-se em três aspectos: formar militantes e quadros para a difusão do Partido no interior da Guiné, garantir o apoio dos países limítrofes (o que foi tarefa complicada porque a República da Guiné pretendia a utilização dos guineenses de Amílcar Cabral na sua própria política e porque o Senegal se manifestou hostil durante seis anos) e, finalmente, a obtenção do apoio internacional.
É a República Popular da China quem dá o primeiro passo, recebendo, em 1960, Amílcar Cabral e alguns quadros que ali ficarão preparando a guerrilha e a formação ideológica. Em 1961 o Reino de Marrocos concede-lhe idêntico apoio.
Em 1962, desencadeia-se a luta armada contra o Estado Português. Tinham passado 17 anos desde que o filho de Juvenal Cabral chegara a Lisboa para frequentar a Universidade.
UMA TEIA DE INTERESSES
Em reportagem publicada no Expresso, a 16 de Janeiro de 1993, José Pedro Castanheira fornece uma série de dados sobre a morte de Amílcar Cabral, que, três anos depois aprofunda no livro "Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?".
É possível crer em vários factos. A política colonial portuguesa, dividindo para reinar, criara uma diferenciação entre cabo-verdianos e guineenses. Os primeiros, mestiços na sua grande maioria e mais escolarizados, são os preferidos da administração do Estado Novo. Desempenham os cargos menos desqualificados, usufruem de um tratamento preferencial. Quando se constitui o PAIGC, os quadros dirigentes são cabo-verdianos, os combatentes são guineenses. O próprio Amílcar Cabral, embora nascido na Guiné, é considerado cabo-verdiano. As tensões, os conflitos no interior do PAIGC existiram sempre. Em 1973, a guerra de libertação nacional encaminha-se para a vitória. Os dirigentes políticos continuam a ser cabo-verdianos. É provável que a proximidade do êxito extremasse a confrontação no Partido.
Séku Turé que, desde 1958, fora um líder africano de grande prestígio está em perda de influência. Por seu turno, Amílcar Cabral é uma personalidade que se evidencia na cena africana e internacional, reunindo apoios que vão da China e dos regimes comunistas, aos países nórdicos. O grande sonho de Turé de anexar a Guiné-Bissau para criar a "Grande Guiné" está em perigo. É bem provável que tivesses dado sinais de concordância aos revoltosos - todos guineenses - para consumarem o crime. Cabral sairia de cena, o PAIGC desmembrar-se-ia, passando, na prática, para o controlo de Turé. (Em Maio de 1974, Leopold Senghor, Presidente do Senegal, não hesita em afirmar ao coronel Carlos Fabião e ao embaixador Nunes Barata ter sido Séku Turé o instigador do assassínio de Amílcar Cabral).
Por fim, a PIDE/DGS. Desde muito, pelo menos desde 1967, a organização policial portuguesa procurava matar Cabral. Alguns guerrilheiros prisioneiros foram manobrados para colaborarem com a polícia política. Ficou provado em relação a alguns dos intervenientes no atentado. Tudo leva a crer que, em medida desconhecida, a PIDE não foi alheia a toda a trama.
Testemunhos da época revelam também que Amílcar Cabral tinha consciência que poderia ser traído pelos companheiros de luta. Afirmara algumas vezes: "se alguém me há-de fazer mal, é quem está aqui entre nós. Ninguém mais pode estragar o PAIGC. Só nós próprios".
Guiné-Bissau -- PM Cabo Verde
Cidade da Praia, 18 jan (Lusa) - Se ressuscitasse, 40 anos depois, Amílcar Cabral, assassinado em 1973, ficaria "satisfeito" com os resultados alcançados por Cabo Verde após a independência, mas "angustiado" com todo o percurso da Guiné-Bissau, disse hoje o primeiro-ministro cabo-verdiano.
Numa entrevista à agência Lusa sobre a morte do "pai" das independências da Guiné-Bissau e Cabo Verde, José Maria Neves lembrou a obra "visionária" de Cabral, um "pedagogo" que constitui uma "referência" para a governação democrática nos dois países.
"Acho que Cabral estaria satisfeito com o percurso de Cabo Verde. Hoje, transformámos um país improvável num país possível e ultrapassámos e construímos a ideia da independência e da dignidade. Há mais prosperidade e temos de continuar nesta linha a trabalhar para debelarmos definitivamente a pobreza", disse.
José Maria Neves, salvaguardando não querer intrometer-se nos assuntos internos da Guiné-Bissau, afirmou, porém, que, globalmente, Cabral estaria "angustiado" com o país.
Questionado pela Lusa sobre as razões por que ainda permanecem desconhecidas as circunstâncias da morte de Cabral, assassinado em Conacri por veteranos da guerrilha nacionalista do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), liderados por Inocêncio Kani, disse ser "difícil" responder.
"É difícil saber, naquelas circunstâncias, quem terá mandado matar Cabral. Havia um conjunto de interesses da potência colonial, da Guiné-Conacri, particularmente do seu líder, Sekou Touré, e de conflitos dentro do próprio PAIGC e todos esses elementos poderão convergir para que determinadas pessoas, na altura dirigentes do partido, tivessem condições para matar Cabral", sustentou.
"Há um feixe de causas, sendo certo que há um conhecimento de quem terá sido o autor material do assassinato de Cabral - Inocêncio Kani e seus companheiros", acrescentou.
Sobre se Cabral foi "ingénuo" ao acreditar na unidade Guiné/Cabo Verde, Neves afirmou perentoriamente ter-se tratado de uma "estratégia da luta" pela independência.
"Acreditava genuinamente na unidade entre os dois povos para construir a dignidade e o futuro. Não diria que fosse ingénuo, embora tenhamos todas as dissensões que vieram a acontecer entre cabo-verdianos e guineenses no palco da luta", disse.
"E temos também toda a história feita por Cabral para unir as diferentes sensibilidades guineenses para, depois, unir as sensibilidades guineenses e cabo-verdianas para poder começar a luta e conseguir a libertação. Aliás, essas dissensões acompanharam toda a luta e estarão na base do seu próprio assassínio", defendeu.
Para o chefe do Governo, à frente do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) desde 2001, Cabral está ao nível das grandes personalidades africanas que lutaram pelo renascimento e libertação de África.
"Coloco Cabral junto a Jomo Kennyata (Quénia), Kwane N'Krumah (Gana), Leopold Senghor (Senegal), Julius Nyerere (Tanzânia), Patrice Lumumba (antigo Congo Belga, atual RDCongo), Jomo Kenyatta (Quénia) e Nelson Mandela (África do Sul), entre outros, que deram tudo para que hoje houvesse uma África livre da subjugação colonial", concluiu.
JSD // VM.
Poucos conhecem a obra do líder histórico -- académico
Cidade da Praia, 18 jan (Lusa) - Mais de 80 por cento dos que citam o pensamento de Amílcar Cabral para os ajudar a manterem-se no poder não conhece a sua obra, defendeu à agência Lusa o académico cabo-verdiano Corsino Tolentino.
"Provavelmente, mais de 80 por cento, para ser modesto, das citações ou dos citadores de Cabral não conhecem a sua obra e não refletiram profundamente sobre a consistência e a coesão dessa obra e a prática dele", salientou o presidente da recentemente criada Academia das Ciências e Humanidades de Cabo Verde (ACHCV).
"No plano teórico e político, há, na Guiné-Bissau, pouco mais do que citações de Cabral. Nota-se uma espécie de comportamento predador que levou o país a ser vítima dos seus próprios atores, sobretudo políticos e é de desconfiar quando eles repetem em demasia as citações ou recorrem a figuras do passado", sustentou Tolentino.
Para o antigo diretor-geral da Fundação Calouste Gulbenkian e antigo dirigente do Partido Africano da Independência Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e, mais tarde, do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV), o partido guineense "faria muito melhor" em fazer um balanço sobre as ideias de Amílcar Cabral, "que são ainda válidas", do que "perder-se em citações".
"Há uma grande diferença entre a teoria e a prática. Quando nos limitamos a citar para afugentar certos riscos ou determinados adversários, reais ou supostos, tal não é legítimo nem honesto", disse, defendendo que, em Cabo Verde, os valores e ideias de Cabral foram mais longe.
Recusando a ideia de que Cabral terá sido ingénuo ao acreditar na unidade Guiné/Cabo Verde, Tolentino sustentou que o contexto africano das décadas de 1950, 1960 e 1970 tinha como pano de fundo precisamente a unidade africana.
"Foi correto e útil pensar essa unidade no contexto da unidade africana. Era razoável pensar-se assim. Reduzir as tensões e os riscos e aumentar o denominador comum, estendendo a unidade, foi uma estratégia genial", apesar de, mais tarde, em 1980, o "sonho" ter caído por terra com o golpe de Estado na Guiné-Bissau, disse.
Amílcar Cabral chega a Portugal em 1945. É o ano da grande esperança para os democratas portugueses, depressa desfeita quando Salazar garante a condescendência dos vencedores da Segunda Guerra Mundial e mantém, inalterável e apoiado, o regime de ditadura.
A primeira mulher de Amílcar, Maria Helena de Athayde Vilhena Rodrigues, foi sua colega no Instituto de Agronomia. Narrou assim a Mário de Andrade o conhecimento do futuro marido, de quem viria a ter duas filhas, Iva Maria e Ana Luísa:
"Conheci Amílcar no primeiro ano de Agronomia, em 1945. As aulas tinham começado em Novembro, ele chegou em Dezembro (...) Eu não pertencia ao seu grupo, mas lembro-me perfeitamente de o ver entre os outros colegas. Como ele era o único negro, notava-se bem... Amílcar não fizera o exame de admissão à Universidade (...) toda a gente falava dele, elogiava a sua inteligência e ele, para mais, era simpático e descontraído. No que respeita às suas actividades políticas, lembro-me que os meus camaradas recolhiam assinaturas de adesão aos movimentos democráticos. E Amílcar participava activamente nesses comités de estudantes antifascistas. Aquando das assembleias era ele quem dirigia as discussões porque se exprimia muito bem (...) No princípio do terceiro ano, em Outubro de 1948, pertencemos à mesma turma, a dos únicos vinte e cinco estudantes que tinham passado nos exames".
Condiscípulos e amigos recordam Amílcar como um indivíduo de dinamismo contagiante, grande sentido de humor, com enorme capacidade de criar amizades. Sedutor, atrai afectos femininos com facilidade.
"Era o mais bem vestido e aprumado de todos nós", lembra seu amigo, o jornalista Carlos Veiga Pereira.
"O meu irmão conseguia fazer amizades em todo lado", diz Luís Cabral. "Foi pela simpatia de Amílcar — revelou em entrevista ao "Diário Popular" o primeiro presidente da República da Guiné-Bissau — que os soviéticos nos forneceram os mísseis com que controlámos a aviação portuguesa. O magnata italiano Perelli era seu amigo e deu-nos as fardas de oficiais que usávamos. Tudo por amizade e simpatia".
O estudo, a militância, os namoros, ainda lhe deixam tempo para se dedicar ao seu desporto preferido: o futebol.
E, segundo as crónicas, caso o tivesse querido poderia ter feito carreira. De tal maneira dá nas vistas na equipa de Agronomia que o Benfica chega a convidá-lo para ingressar no clube. Mas Amílcar declina a proposta e mantém-se apenas nos "pelados" universitários.
Durante os anos de estudo um irresistível apelo o toma, bem como a outros estudantes negros: era necessário o regresso a África. Não só pela família que ama profundamente, mas porque "milhões de indivíduos têm necessidade da minha contribuição na luta difícil que travam contra a natureza e os próprios homens (...) Lá, em África, apesar das cidades modernas e belas da costa, há ainda milhares de seres humanos que vivem nas mais profundas trevas". Em 1949, escreverá: "Vivo intensamente a vida e dela extraí experiências que me deram uma direcção, uma via que devo seguir, sejam quais forem as perdas pessoais que isso me ocasione. Eis a razão de ser da minha vida".
Esta vida a que se refere, partilha-a, em Lisboa, no Instituto de Agronomia, na Casa dos Estudantes do Império e nos livros que lhe abrem os horizontes de compreensão do mundo do seu tempo. Entre esses livros um será determinante: a Anthologie de la nouvelle poésie négre et malgache, organizada por Léopold Sédar Senghor. Este livro traz-lhe a certeza que "o negro está a despertar em todo o mundo". Teoriza sobre o cabo-verdiano — o homem resultante da fusão dos primeiros habitantes do arquipélago, brancos e negros. Já então reconhece que o número de mestiços é seis vezes superior ao dos brancos e três vezes ao dos negros — do ponto de vista psíquico há um "espírito cabo-verdiano", existe a cabo-verdianidade. Esta profissão de fé tem de ser harmonizada com a militância. No quinto ano do curso, Amílcar volta ao arquipélago para passar as férias grandes. A sua especialidade técnica - a erosão dos solos - e a cultura geral de que dispõe, quer transmiti-las e ensiná-las aos cabo-verdianos. Na Praia, pronuncia, através do Rádio Clube de Cabo Verde, várias palestras sobre as características do solo das ilhas. Apesar das dificuldades, reconhece que a agricultura é a base da economia de Cabo Verde. Para tal, é necessário elucidar, esclarecer, consciencializar o homem da rua. Amílcar coloca o problema da elite na sociedade. É preciso criar uma vanguarda intelectual que leve ao cabo-verdiano anónimo toda a informação sobre os seus problemas tradicionais. Como dirá: "Os quadros devem esclarecer aqueles que vivem na ignorância".
Esta informação deve ultrapassar os limites de Cabo Verde e tornar-se uma informação global que se alargue a todo o mundo. Eis a sua tarefa de militante: consciencializar os cabo-verdianos.
Mas as autoridades portuguesas rapidamente lhe proíbem o acesso à rádio. Como lhe proíbem que ministre um curso nocturno na Escola Central da Praia.
"Dar a conhecer Cabo Verde aos cabo-verdianos" corresponde ao que acontece em Angola: "Partamos à descoberta de Angola" é a divisa de um grupo de jovens intelectuais em torno do poeta Viriato da Cruz.
De novo em Lisboa, Amílcar firma os laços que o unem a outros estudantes originários das colónias portuguesas. Trata-se de um grupo de jovens, provenientes da pequena burguesia urbana africana, todos conscientes da revolta contra o colonialismo e detentores da vantagem de possuírem instrução e cultura. Militam nas organizações da juventude democrática portuguesa, o MUD Juvenil, o Movimento para a Paz. Com uma bandeira que os diversifica dos europeus: a reafricanização dos espíritos, diz Amílcar Cabral. Esta reprocura da identidade leva à criação, em casa da família Espírito Santo (de que é figura proeminente a santomense Alda Espírito Santo), de um Centro de Estudos Africanos. Ali se discutem, apesar das incursões da PIDE, algumas das questões mais prementes da África sob a domínio português. Amílcar tem nesses debates uma participação decisiva.
O PAIGC E O INÍCIO DA LUTA ARMADA
Após terminar o curso, em 1950, faz estágio na Estação Agronómica de Santarém. Pouco depois, falece Juvenal Cabral. Em 1952, Amílcar regressa a África, a Bissau, contratado pelos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné Portuguesa.
Aos 28 anos desembarca em Bissau um engenheiro agrónomo que tem em mira outros fins que não só os da sua profissão (onde, aliás, será sempre de grande competência). O principal desses fins: consciencializar as massas populares guineenses. Como escreverá na comunicação aos quadros, em plena luta de libertação, em 1969: "Não foi por acaso que viemos para a Guiné. Nenhuma necessidade material determinava o nosso regresso ao país natal. Tudo foi calculado, passo a passo. Tínhamos enormes possibilidades de trabalhar nas outras colónias portuguesas e mesmo em Portugal. Abandonámos um bom lugar de investigador na Estação Agronómica para virmos para um lugar de engenheiro de segunda classe na Guiné (...) Isto obedeceu a um cálculo, a um objectivo, à ideia de fazer qualquer coisa, de contribuir para o levantamento do povo, para lutar contra os portugueses. É isso que temos feito desde o primeiro dia em que chegámos à Guiné".
O "Engenheiro", como lhe chamarão os compatriotas, está na melhor das posições para levar a cabo a tarefa de consciencialização. No posto agrícola de Pessubé, que dirige, contacta com os trabalhadores rurais entre os quais cabo-verdianos. É difícil a unidade entre estes e os guineenses para a constituição de uma luta comum. Será difícil até ao fim, apesar de alguns cabo-verdianos (Aristides Pereira, Fernando Fortes, Abílio Duarte, entre outros) se unirem à sua volta. O trabalho político segue a par da actividade profissional. Encarregado da planificação e execução do recenseamento agrícola da Guiné, o relatório que elabora continua a ser hoje o primeiro dado valorizável para o conhecimento da agricultura guineense.
A princípio, Amílcar Cabral procura agir na legalidade. Redige os estatutos de um Clube desportivo e cultural ao qual podem aderir todos os guineenses. As autoridades portuguesas não o autorizarão a funcionar porque a maioria dos signatários não possui bilhete de identidade.
Em 1955, o governador Melo e Alvim obriga Cabral a deixar a Guiné, embora lhe permita voltar uma vez por ano, por razões familiares.
1955 é o ano da Conferência de Bandung que assinala o nascimento do Movimento dos Não-Alinhados, do final da primeira guerra de independência do Vietname, da passagem à luta armada da FNL argelina. E Amílcar Cabral transferido para Angola, trabalha em Cassequel, como engenheiro... e tomando contacto activo com os fundadores do MPLA, ao qual se liga, desde início.
Numa das suas passagens por Bissau, a 19 de Setembro de 1959, Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, Júlio de Almeida, Fernando Fortes e Elisée Turpin criam o Partido Africano da Independência/União dos Povos da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Obviamente, um partido clandestino, que só deixará de o ser quatro anos mais tarde, quando instalar a sua delegação exterior em Conacri.
Nesse período, a actividade de Amílcar Cabral é esgotante. Continuando os seus estudos fitossanitários e agrológicos, viaja frequentemente entre Portugal, Angola e Guiné.
Em Novembro de 1957 participa em Paris numa reunião para o desenvolvimento da luta contra o colonialismo português, mantém contactos com os anti-colonialistas em Lisboa, está em Accra num encontro pan-africano e vai a caminho de Luanda quando ocorre o massacre de Pidjiguiti. Em Janeiro de 1960 vai à II Conferência dos povos africanos, em Tunis, em Maio está em Conacri. Ainda neste ano, em Londres, denuncia numa conferência internacional, pela primeira vez, o colonialismo português. Mas aí, como durante todos os anos de luta, sublinha com ênfase não estar contra o povo português. O seu combate é, em exclusivo, contra o sistema colonial.
Hoje, as investigações históricas e os depoimentos de muitos intervenientes da época mostram que líder do PAIGC sempre se disponibilizou para negociações com o Governo português, nunca aceites pelo regime da ditadura.
Entre 1960 e 1962, o PAIGC actua a partir da República da Guiné. Essa actuação desenvolve-se em três aspectos: formar militantes e quadros para a difusão do Partido no interior da Guiné, garantir o apoio dos países limítrofes (o que foi tarefa complicada porque a República da Guiné pretendia a utilização dos guineenses de Amílcar Cabral na sua própria política e porque o Senegal se manifestou hostil durante seis anos) e, finalmente, a obtenção do apoio internacional.
É a República Popular da China quem dá o primeiro passo, recebendo, em 1960, Amílcar Cabral e alguns quadros que ali ficarão preparando a guerrilha e a formação ideológica. Em 1961 o Reino de Marrocos concede-lhe idêntico apoio.
Em 1962, desencadeia-se a luta armada contra o Estado Português. Tinham passado 17 anos desde que o filho de Juvenal Cabral chegara a Lisboa para frequentar a Universidade.
UMA TEIA DE INTERESSES
Em reportagem publicada no Expresso, a 16 de Janeiro de 1993, José Pedro Castanheira fornece uma série de dados sobre a morte de Amílcar Cabral, que, três anos depois aprofunda no livro "Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?".
É possível crer em vários factos. A política colonial portuguesa, dividindo para reinar, criara uma diferenciação entre cabo-verdianos e guineenses. Os primeiros, mestiços na sua grande maioria e mais escolarizados, são os preferidos da administração do Estado Novo. Desempenham os cargos menos desqualificados, usufruem de um tratamento preferencial. Quando se constitui o PAIGC, os quadros dirigentes são cabo-verdianos, os combatentes são guineenses. O próprio Amílcar Cabral, embora nascido na Guiné, é considerado cabo-verdiano. As tensões, os conflitos no interior do PAIGC existiram sempre. Em 1973, a guerra de libertação nacional encaminha-se para a vitória. Os dirigentes políticos continuam a ser cabo-verdianos. É provável que a proximidade do êxito extremasse a confrontação no Partido.
Séku Turé que, desde 1958, fora um líder africano de grande prestígio está em perda de influência. Por seu turno, Amílcar Cabral é uma personalidade que se evidencia na cena africana e internacional, reunindo apoios que vão da China e dos regimes comunistas, aos países nórdicos. O grande sonho de Turé de anexar a Guiné-Bissau para criar a "Grande Guiné" está em perigo. É bem provável que tivesses dado sinais de concordância aos revoltosos - todos guineenses - para consumarem o crime. Cabral sairia de cena, o PAIGC desmembrar-se-ia, passando, na prática, para o controlo de Turé. (Em Maio de 1974, Leopold Senghor, Presidente do Senegal, não hesita em afirmar ao coronel Carlos Fabião e ao embaixador Nunes Barata ter sido Séku Turé o instigador do assassínio de Amílcar Cabral).
Por fim, a PIDE/DGS. Desde muito, pelo menos desde 1967, a organização policial portuguesa procurava matar Cabral. Alguns guerrilheiros prisioneiros foram manobrados para colaborarem com a polícia política. Ficou provado em relação a alguns dos intervenientes no atentado. Tudo leva a crer que, em medida desconhecida, a PIDE não foi alheia a toda a trama.
Testemunhos da época revelam também que Amílcar Cabral tinha consciência que poderia ser traído pelos companheiros de luta. Afirmara algumas vezes: "se alguém me há-de fazer mal, é quem está aqui entre nós. Ninguém mais pode estragar o PAIGC. Só nós próprios".
Guiné-Bissau -- PM Cabo Verde
Cidade da Praia, 18 jan (Lusa) - Se ressuscitasse, 40 anos depois, Amílcar Cabral, assassinado em 1973, ficaria "satisfeito" com os resultados alcançados por Cabo Verde após a independência, mas "angustiado" com todo o percurso da Guiné-Bissau, disse hoje o primeiro-ministro cabo-verdiano.
Numa entrevista à agência Lusa sobre a morte do "pai" das independências da Guiné-Bissau e Cabo Verde, José Maria Neves lembrou a obra "visionária" de Cabral, um "pedagogo" que constitui uma "referência" para a governação democrática nos dois países.
"Acho que Cabral estaria satisfeito com o percurso de Cabo Verde. Hoje, transformámos um país improvável num país possível e ultrapassámos e construímos a ideia da independência e da dignidade. Há mais prosperidade e temos de continuar nesta linha a trabalhar para debelarmos definitivamente a pobreza", disse.
José Maria Neves, salvaguardando não querer intrometer-se nos assuntos internos da Guiné-Bissau, afirmou, porém, que, globalmente, Cabral estaria "angustiado" com o país.
Questionado pela Lusa sobre as razões por que ainda permanecem desconhecidas as circunstâncias da morte de Cabral, assassinado em Conacri por veteranos da guerrilha nacionalista do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), liderados por Inocêncio Kani, disse ser "difícil" responder.
"É difícil saber, naquelas circunstâncias, quem terá mandado matar Cabral. Havia um conjunto de interesses da potência colonial, da Guiné-Conacri, particularmente do seu líder, Sekou Touré, e de conflitos dentro do próprio PAIGC e todos esses elementos poderão convergir para que determinadas pessoas, na altura dirigentes do partido, tivessem condições para matar Cabral", sustentou.
"Há um feixe de causas, sendo certo que há um conhecimento de quem terá sido o autor material do assassinato de Cabral - Inocêncio Kani e seus companheiros", acrescentou.
Sobre se Cabral foi "ingénuo" ao acreditar na unidade Guiné/Cabo Verde, Neves afirmou perentoriamente ter-se tratado de uma "estratégia da luta" pela independência.
"Acreditava genuinamente na unidade entre os dois povos para construir a dignidade e o futuro. Não diria que fosse ingénuo, embora tenhamos todas as dissensões que vieram a acontecer entre cabo-verdianos e guineenses no palco da luta", disse.
"E temos também toda a história feita por Cabral para unir as diferentes sensibilidades guineenses para, depois, unir as sensibilidades guineenses e cabo-verdianas para poder começar a luta e conseguir a libertação. Aliás, essas dissensões acompanharam toda a luta e estarão na base do seu próprio assassínio", defendeu.
Para o chefe do Governo, à frente do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) desde 2001, Cabral está ao nível das grandes personalidades africanas que lutaram pelo renascimento e libertação de África.
"Coloco Cabral junto a Jomo Kennyata (Quénia), Kwane N'Krumah (Gana), Leopold Senghor (Senegal), Julius Nyerere (Tanzânia), Patrice Lumumba (antigo Congo Belga, atual RDCongo), Jomo Kenyatta (Quénia) e Nelson Mandela (África do Sul), entre outros, que deram tudo para que hoje houvesse uma África livre da subjugação colonial", concluiu.
JSD // VM.
Poucos conhecem a obra do líder histórico -- académico
Cidade da Praia, 18 jan (Lusa) - Mais de 80 por cento dos que citam o pensamento de Amílcar Cabral para os ajudar a manterem-se no poder não conhece a sua obra, defendeu à agência Lusa o académico cabo-verdiano Corsino Tolentino.
"Provavelmente, mais de 80 por cento, para ser modesto, das citações ou dos citadores de Cabral não conhecem a sua obra e não refletiram profundamente sobre a consistência e a coesão dessa obra e a prática dele", salientou o presidente da recentemente criada Academia das Ciências e Humanidades de Cabo Verde (ACHCV).
"No plano teórico e político, há, na Guiné-Bissau, pouco mais do que citações de Cabral. Nota-se uma espécie de comportamento predador que levou o país a ser vítima dos seus próprios atores, sobretudo políticos e é de desconfiar quando eles repetem em demasia as citações ou recorrem a figuras do passado", sustentou Tolentino.
Para o antigo diretor-geral da Fundação Calouste Gulbenkian e antigo dirigente do Partido Africano da Independência Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e, mais tarde, do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV), o partido guineense "faria muito melhor" em fazer um balanço sobre as ideias de Amílcar Cabral, "que são ainda válidas", do que "perder-se em citações".
"Há uma grande diferença entre a teoria e a prática. Quando nos limitamos a citar para afugentar certos riscos ou determinados adversários, reais ou supostos, tal não é legítimo nem honesto", disse, defendendo que, em Cabo Verde, os valores e ideias de Cabral foram mais longe.
Recusando a ideia de que Cabral terá sido ingénuo ao acreditar na unidade Guiné/Cabo Verde, Tolentino sustentou que o contexto africano das décadas de 1950, 1960 e 1970 tinha como pano de fundo precisamente a unidade africana.
"Foi correto e útil pensar essa unidade no contexto da unidade africana. Era razoável pensar-se assim. Reduzir as tensões e os riscos e aumentar o denominador comum, estendendo a unidade, foi uma estratégia genial", apesar de, mais tarde, em 1980, o "sonho" ter caído por terra com o golpe de Estado na Guiné-Bissau, disse.
Um afro abraço.