O sincretismo foi um mecanismo cultural decisivo para a reconstituição das religiões africanas no
Brasil. A própria palavra “santo” serviu de tradução para “orixá”, inclusive nos termos “mãe de santo”, “filho de santo”, “povo de santo” e outras palavras compostas em que originalmente a palavra africana era orixá. E esse santo é o santo católico.
O candomblé se formou e se transformou no contexto social e cultural católico do Brasil do século xix. Pelo sincretismo, os orixás passaram a ser identificados com os santos, sendo louvados, assim, tanto nos terreiros como nas igrejas. Os seguidores dos orixás no Brasil, especialmente nos primeiros tempos, eram também católicos, e muitos rituais realizados no terreiro eram complementados por cerimônias atendidas na igreja.
Isso mesmo, candomblé e Igreja católica andam juntos. Nem podia ser diferente. Antes da primeira constituição republicana brasileira, de 1891, o catolicismo era a religião oficial do Estado e a única tolerada. Nesse período anterior à República, atos civis como o registro de nascimento e o casamento eram atribuições das paróquias católicas. Quem era brasileiro devia ser também católico, ou não tinha lugar na sociedade. O candomblé nasceu, assim, como uma espécie de segunda religião de negros católicos, fossem escravos ou livres, nascidos no Brasil ou na África. Só em anos recentes o candomblé foi se tornando religião autônoma, apartada do catolicismo, mas o sincretismo ainda persiste na maioria dos terreiros. O candomblé, que aos poucos vai deixando de lado o sincretismo, dos anos 1960 para cá vem se transformando em religião para todos, sejam negros, pardos, brancos ou amarelos, sem fronteiras de etnia, cor, classe social ou origem geográfica.
O preconceito racial, que considerava o negro africano um ser inferior ao homem branco, se
desdobrou em preconceito contra a religião fundada por negros livres e escravos. Aos longo de mais
de um século, em diferentes partes do país, terreiros foram invadidos, depredados e fechados, pais e filhos de santo, presos, objetos sagrados, profanados, apreendidos e destruídos. Isso obrigou o candomblé a se esconder, buscando lugares distantes, às vezes no meio do mato, para poder realizar suas cerimônias em paz. Transformou-se numa religião de muitos segredos, pois tudo tinha que ocultar dos olhares impiedosos da sociedade branca. O sincretismo católico lhe serviu também de guarida e disfarce. A presença de um altar com os santos católicos ocupando lugar de relevo no barracão do candomblé com Pierre verger e carybé nações de candomblé. A religião dos deuses africanos é denominada xangô em Pernambuco, tambor de mina no Maranhão e batuque no Rio Grande do Sul. No Rio de Janeiro, proveniente de cultos baianos e locais, houve uma antiga religião denominada macumba, que no início do século x, em contato com o espiritismo kardecista, se transformou na mais nova religião afro-brasileira: a umbanda.
Os caminhos de Ogún até São Jorge
Ogún é talvez, o maior exemplo do sincretismo mundial. Nasce na África como Ogún, passa pela Grécia como Ares, que na sua figura espartana era Enialao, e recebia como Ogún africano sacrifício de cães; e Hefesto. Vai à Roma como Marte, chega à Lituânia como Kalvellis e encontra o cristianismo como São Jorge da Capadócia. Na verdade, uma entidade guerreira evocada em tempos
de guerra.
São Jorge é reconhecidamente um dos santos católicos mais populares do Brasil. Uma das maiores devoções, principalmente no estado do Rio de Janeiro e na Bahia. É o padroeiro e protetor de um dos mais populares clubes de futebol do Brasil, o Corinthians Paulista. Um santo adorado e cultuado tanto no catolicismo, quanto na Umbanda, onde é sincretizado com o orixá Ogún.
Entretanto poucos sabem que este santo popular no Brasil, padroeiro de importantes nações como a Inglaterra e Turquia, na verdade não é mais um santo do cânon católico. Ou seja, perdeu seu status de santo durante o Concílio Vaticano II, realizado sob a liderança do Papa Paulo VI entre os anos 1962 e 1969. Isto porque, uma comissão neste, que foi o mais importante congresso eucarístico da Igreja do Século XX, foi incumbida de analisar a veracidade e a comprovação da existência de muitos santos que, por devoção popular, e pelo fato da Igreja Romana ter sido construída e constituída sobre as ruínas do Império Romano, poderia ser somente incorporação de deuses pagãos, ou mesmo mitos Greco-romanos. E junto com mais de 100 santos na mesma condição de lendas, o querido São Jorge acabou por entrar no bojo da cassação e perdendo o seu mandato de santo.
Os mais devotos nem mesmo querem saber deste fato. Ora, São Jorge é São Jorge, o Guerreiro, e santo ou não santo, “Salve Jorge”.
Entretanto, muitos que nem mesmo atentarariam para este fato não pararam para perceber porque as igrejas em honra a este santo não mais existem, sendo pouquíssimas no Rio de Janeiro, e em São Paulo somente uma capela dentro do clube do Corinthians, no parque São Jorge. E se o Brasil ainda tem um resquício do culto a Jorge da Capadócia permitido deve-se a um pedido pessoal do Cardeal D. Paulo Evaristo Arns, Arcebispo Emérito de São Paulo, corintiano fervoroso ao papa Paulo VI. Entretanto, nos outros países o guerreiro de Lida e matador de dragões ficou nos livros de história ou confinado na lua mesmo.
Contra o santo pesa o fato de que Jorge da Capadócia, é que somente o seu talento em matar animais
mitológicos já lhe conferia uma desconfiança natural, afinal, sabe-se muito bem que o dragão nunca existiu, e se o dragão não passou pela Terra, o seu matador bem que poderia ser mitológico também, como Sir Lancelot e os cavaleiros da Távola Redonda do Rei Arthur.
Se liga: Tal como um santo mitológico conseguiu chegar ao século XX com tanto fervor em todas as religiões cristãs do mundo, posto que na Igreja Católica Armênia e Ortodoxa Grega ele ainda goza dos seus privilégios canônicos. Como então este culto permaneceu com tanta força, fazendo com que Jorge da Capadócia chegasse até o ponto de ser o padroeiro de países tão importantes como a Grã Bretanha? É que Jorge é um dos únicos que caminharam desde os primórdios da humanidade com as mesmas características e cultos. A sua liturgia começa justamente na África, como um Orisà Emorá chamado de Ogún Oni-Iré entre os Yourubanos, ou seja, Rei dos Irès, vai aos povos Bantus como Roxo-Mucumbo (Kassange) e Macumbé (Kibindo e Oviobundo e Muxincongo). E de alguma modo parte para a Europa em diversas formas. Entretanto com cultos idênticos. Passa pela Grécia como Ares, que na sua figura espartana era Enialao, e recebia como Ogún africano sacrifício de cães, e Hefesto. Vai à Roma como Marte, chega à Lituânia como Kalvellis e encontra o cristianismo como São Jorge da Capadócia.
Mas qual a coincidência entre todas estas entidades ou divindades mitológicas, e qual seria a sua identificação com Jorge da Capadócia? É que todos são entidades da Guerra, protetores dos Exércitos; forjadores do aço e das armas. Senhores das espadas e das armas de metal. Entidades sempre evocadas durante as guerras com o respeito e o temor de invocação com motivos claros e necessidades prementes. Além do fato de quase todos receber cultos idênticos, como sacrifícios de
cães e oferendas de inhame e feijão preto, como é o caso de Hefesto, Ogun, Enialao e Marte.
No Brasil, São Jorge é um dos santos mais queridos. Muito pelo fato do povo possuir características lutadoras, um povo que teve que superar vicissitudes e todo o tipo de preconceito para se tornar o mais cosmopolita de todo o Planeta. Um povo que, como o culto de Jorge acolhe a cultura e o saber de todo o mundo. Além do fato de, ser a Umbanda talvez a maior responsável pelo sucesso de São Jorge no Brasil. É ele o santo-Orixá mais popular e querido na Umbanda Sagrada. Jorge e Ogún são, sem dúvida alguma a dupla santo-orixá mais querida do Brasil, e assim será. E mais ainda sabendo que, esta dupla não é simplesmente um Ogún.
O sincretismo criado nas senzalas como São Sebastião-Oxossi, Santa Bárbara-Yansã ou São Jerônimo-Xangô. São Jorge realmente, pela sua hermenêutica antropológica e teológica é verdadeiramente...
Então, Salve Jorge, com todas as razões e motivos, eOgún -Yé- Patakori-Aowndeji!
Um afro abraço.
Claudia Vitalino