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sábado, 29 de setembro de 2018

A experiencia do ancião e a valorização da tradição na literatura africana

As civilizações africanas, no Saara e ao sul do deserto, eram em grande parte civilizações da palavra falada, mesmo onde existia a escrita, como na África ocidental a partir do século XVI, pois muito

poucas pessoas sabiam escrever, ficando a escrita muitas vezes relegada a um plano secundário em relação às preocupações essenciais da sociedade. Seria um erro reduzir a civilização da palavra falada simplesmente a uma negativa, "ausência do escrever", e perpetuar o desdém inato dos letrados pelos iletrados, que encontramos em tantos ditados, como no provérbio chinês: "A tinta mais fraca é preferível à mais forte palavra". Isso demonstraria uma total ignorância da natureza dessas civilizações orais. Como disse um estudante iniciado em uma tradição esotérica: "O poder da palavra é terrível. Ela nos une, e a revelação do segredo nos destrói" (através da destruição da identidade da sociedade, pois a palavra destrói o segredo comum).

A civilização oral
Um estudioso que trabalha com tradições orais deve compenetrar-se da atitude de uma civilização oral em relação ao discurso, atitude essa, totalmente diferente da de uma civilização onde a escrita registrou todas as mensagens importantes. Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, Isto é, a tradição oral. A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas. Os Dogon sem dúvida expressaram esse nominalismo da forma mais evidente; nos rituais constatamos em toda parte que o nome é a coisa, e que "dizer" é "fazer".

A oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade. As tradições desconcertam o historiador contemporâneo - imerso em tão grande número de evidências escritas, vendo-se obrigado, por isso, a desenvolver técnicas de leitura rápida - pelo simples fato de bastar à compreensão a repetição dos mesmos dados em diversas mensagens. As tradições requerem um retorno contínuo à fonte. Fu Kiau, do Zaire, diz, com razão, que é ingenuidade ler um texto oral uma ou duas vezes e supor que já o compreendemos. Ele deve ser escutado, decorado, digerido internamente, como um poema, e cuidadosamente examinado para que se possam apreender seus muitos significados - ao menos no caso de se tratar de uma elocução importante. O historiador deve, portanto, aprender a trabalhar mais lentamente, é refletir, para embrenhar-se numa representação coletiva, já que o corpus da tradição é a memória coletiva de uma sociedade que se explica a si mesma. Muitos estudiosos africanos, como Amadou Hampâté-Ba ou Boubou Hama, muito eloqüentemente têm expressado esse mesmo raciocínio. O historiador deve iniciar-se, primeiramente, nos modos de pensar da sociedade oral, antes de interpretar suas tradições.

A natureza da tradição oral
A tradição oral foi definida como um testemunho transmitido oralmente de uma geração à outra. Suas características particulares são o verbalismo e sua maneira de transmissão, na qual difere das fontes escritas. Devido à sua complexidade, não é fácil encontrar uma definição para tradição oral que dê conta de todos os seus aspectos. Um documento escrito é um objeto: um manuscrito. Mas um documento oral pode ser definido de diversas maneiras, pois um indivíduo pode interromper seu testemunho, corrigir-se, recomeçar, etc. Uma definição um pouco arbitrária de um testemunho poderia, portanto, ser: todas as declarações feitas por uma pessoa sobre uma mesma seqüência de acontecimentos passados, contanto que a pessoa não tenha adquirido novas informações entre as diversas declarações. Porque, nesse último caso, a transmissão seria alterada e estaríamos diante de uma nova tradição.

Algumas pessoas, em particular especialistas como os griots, conhecem tradições relativas a toda uma série de diferentes eventos. Houve casos de uma pessoa recitar duas tradições diferentes para relatar o mesmo processo histórico. Informantes de Ruanda relataram duas versões de uma tradição sobre os Tutsi e os Hutu: uma, segundo a qual, o primeiro Tutsi caiu do céu e encontrou o Hutu na terra; e outra, segundo a qual Tutsi e Hutu eram irmãos. Duas tradições completamente diferentes, um mesmo informante e um mesmo assunto! É por isso que se inclui "uma mesma seqüência de acontecimentos" na definição de um testemunho. Enfim, todos conhecem o caso do informante local que conta uma história compósita, elaborada a partir das diferentes tradições que ele conhece.


Uma tradição é uma mensagem transmitida de uma geração para a seguinte. Mas nem toda informação verbal é uma tradição. Inicialmente, distinguimos o testemunho ocular, que é de grande valor, por se tratar de uma fonte "imediata", não transmitida, de modo que os riscos de distorção do conteúdo são mínimos. Aliás, toda tradição oral legítima deveria, na realidade, fundar-se no relato de um testemunho ocular. O boato deve ser excluído, pois, embora certamente transmita uma mensagem,
é resultado, por definição, do ouvir dizer. Ao fim, ele se toma tão distorcido que só pode ter valor como expressão da reação popular diante de um determinado acontecimento, podendo, no entanto, também dar origem a uma tradição, quando é repetido por gerações posteriores. Resta, por fim, a tradição propriamente dita, que transmite evidências para as gerações futuras.


A origem das tradições pode, portanto, repousar num testemunho ocular, num boato ou numa nova criação baseada em diferentes textos orais existentes, combinados e adaptados para criar uma nova mensagem. Mas somente as tradições baseadas em narrativas de testemunhos oculares são realmente válidas, o que os historiadores do Islã compreenderam muito bem. Desenvolveram uma complicada técnica para determinar o valor dos diferentes Hadiths, ou tradições que se pretendiam palavras do Profeta, recolhidas por seus companheiros. Com o tempo, o número de Hadiths tomou-se muito grande, e foi necessário eliminar aqueles para os quais a cadeia de informantes (lsnad) que ligava o erudito que as havia registrado por escrito a um dos companheiros do Profeta não podia ser estabelecida. Para cada ligação, o cronista islâmico determinava critérios de probabilidade e credibilidade idênticos aos empregados na crítica histórica atual. Poderia a testemunha intermediária conhecer a tradição? Poderia compreendê-la? Era seu interesse distorcê-la? Poderia tê-la transmitido? E, se fosse o caso, quando, como e onde?


Notaremos que a definição de tradições apresentada aqui não implica nenhuma limitação, a não ser o verbalismo e a transmissão oral. Inclui, por- tanto, não apenas depoimentos como as crônicas orais de um reino ou as genealogias de uma sociedade segmentária, que conscientemente pretenderam descrever acontecimentos passados, mas também toda uma literatura oral que fornecerá detalhes sobre o passado, muito valiosos por se tratar de testemunhos inconscientes, e, além do mais, fonte importante para a história das idéias, dos valores e da habilidade oral.


As tradições são também obras literárias e deveriam ser estudadas como tal, assim como é necessário estudar o meio social que as cria e transmite e a visão de mundo que sustenta o conteúdo de qualquer expressão de uma determinada cultura. f:. por isso que nas seções seguintes trataremos respectivamente da crítica literária e da questão do ambiente social e cultural, antes de passarmos ao problema cronológico e à avaliação geral das tradições.

A tradição como obra literária
Numa sociedade oral, a maioria das obras literárias são tradições, e todas as tradições conscientes são elocuções orais. Como em todas elocuções, a forma e os critérios literários influenciam o conteúdo da mensagem. Essa é a principal razão das tradições serem colocadas no quadro geral de um estudo de estruturas literárias e serem avaliadas criticamente como tal.
Um primeiro problema é o da forma da mensagem. Há quatro formas básicas, resultantes de uma combinação prática de dois conjuntos de princípios. Em alguns casos, as palavras são decoradas, em outros, a escolha é entregue ao artista. Em alguns casos, uma série de regras formais especiais são sobrepostas à gramática da língua comum, em outros, não existe tal sistema de convenções.

Um afro abraço.
Claudia Vitalino.
fonte:http://afrologia.blogspot.com.

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