"Frantz Fanon morreu em 1961, quando tinha 36 anos, o pensamento do autor ainda é discutido por acadêmicos e ativistas políticos em diferentes línguas e regiões. Entretanto, essa presença no cenário
atual é acompanhada por intensos debates sobre o que se considera como estatuto central de sua obra, e principalmente, quais categorias apresentadas por ele podem ser apropriadas como elementos relevantes para a compreensão da sociedade contemporânea" (MBEMBE, 2011 e GORDON, SHARPLEY-WHITING E WHITE, 2000).
atual é acompanhada por intensos debates sobre o que se considera como estatuto central de sua obra, e principalmente, quais categorias apresentadas por ele podem ser apropriadas como elementos relevantes para a compreensão da sociedade contemporânea" (MBEMBE, 2011 e GORDON, SHARPLEY-WHITING E WHITE, 2000).
“Nossos pais os Gauleses”
A terceiro-mundismo e a luta de classes- Em dezembro de 1960, depois de circular por várias partes do continente africano fomentando a necessidade de expandir a guerra de libertação a outros países, no auge de sua atuação política, Fanon inicia a escrita de um livro que problematizaria a relação da revolução argelina com outros povos do Continente. No entanto, para a sua surpresa é diagnosticado é diagnosticado com leucemia, e percebe, mediante aos estágios a medicina se encontra nesta época, que lhe resta pouco tempo de via.
Inicia assim a escrita apressada do que sabidamente seria o seu livro, alterando o curso da escrita de forma a sintetizar seus acúmulos teóricos antes que seu tempo esgote. É neste contexto, que será escrito em questão de meses o famoso Les damnés de la terre. Enquanto escrevia o livro e revisava os trechos, chegou
a voar para Itália a fim de encontrar Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, para encomendar a Sartre o Prefácio do seu livro.
O livro trata, entre outros assuntos, dos conflitos implícitos ao colonialismo e à luta anticolonial. Alerta que a violência é parte fundante da sociedade colonial, estando presente em todas as suas expressões materiais e simbólicas. Constata ainda que a superação da lógica colonial só seria viável náquelas situações em que os colonizados empreendessem força material proporcionalmente capaz de abalas as forças sociais a ponto de fazer surgir um homem novo:
A descolonização se propõe a mudar a ordem do mundo, é, como se vê, um programa de desordem abosoluta(…)é um processo histórico: isto é, ela só pode ser compreendida, só tem inteligibilidade, só se torna translúcida para si mesma na exata medida em que discerne o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente antagônicas, que têm precisamente a sua origem nessa espécie de substancialização que a situação colonial excreta e alimenta. (…) a descolonização é verdadeiramente a criação de homens novos. Mas essa criação não recebe a sua legitimidade de nenhuma potência sobrenatural: a “coisa” colonizada se torna homem no processo mesmo pelo qual ela se liberta. (FANON, 2010:52-3)
Num diálogo constante com os movimentos internacionais ligados ao terceiromundismo, Frantz Fanon alerta que mesmo na África, o processo de revolução nacional não podem ignorar as especificidades de entificação da capitalismo, a composição das diferentes de classes sociais e seus interesses. Os países coloniais são economicamente mente mortal, tal como descreve Hegel em sua metáfora do senhorio e do servo, e que parecia impossível atrasados e subdesenvolvidos a partir da relação histórica com suas metrópoles sanguessugas. Esta realidade relega as colônias uma produção de bens primários voltados à exportação, uma classe operária insipiente, um campesinato palperizado e analfabeto e uma burguesia local subordinada à interesses externos.
Acrítica à negritude
"Os povos colonizados, não seguiram inertes à colonização e buscaram desenvolver estratégias diversas de resistência e emancipação. É o Branco que cria o Negro, mas é, por outro lado “o negro que cria a negritude” (FANON, 1968:20), afirmando-se na luta por um reconhecimento objetivo".
A pesar de reconhecer a legitimidade histórica da luta anti-racista e dos movimentos de afirmação cultural (FANON, 2010:244), na medida em que promovem o questionamento dos valores racistas europeus, Fano
alerta que muitas vezes a luta anti-racista – classificada por ele como “racismo anti-racista” – ou de afirmação cultural não consegue superar os limites e contradições históricas que a forjaram.
O “conceito de negritude” admite, “é a antítese afetiva, senão lógica, desse insulto que o homem branco fazia á humanidade”. E completa: “Essa negritude lançada contra o desprezo do branco se revelou, em certos setores, como o único fator capaz de derrubar interdições e maldições” (FANON, 2010:246). No entanto, essa contraposição, historicamente necessária, levou o movimento a um impasse: “ à afirmação incondicional da cultura europeia sucedeu a afirmação incondicional da cultura africana” (Idem).
Se o colonialismo definiu como essencialmente negro a emoção, o corpo, a virilidade, ludicidade, mas, sobretudo, classificou hierarquicamente estes elementos como inferiores, frente à não menos fetichizada (e ilusória) imagem criada para o Europeu – Razão, civilização, cultura, universalidade -, o movimento de negritude, sem romper com estes fetichismos, apenas inverteu os polos da hierarquia, passando a considerar como positivo àquilo que o colonialismo classificou como inferior.
Assim a inocência, musicalidade, o ritmo “nato” do africano, passam a ser afirmados pelos movimentos anti-racistas como elementos essencialmente africanos, mas agora, vistos como superiores e desejáveis frente à frieza tecnicista ocidental (SENGHOR, 1939). As “almas da gente negra” passam a ser classificadas como essências metafísicas, ou no mínimo históricas, que precisariam ser resgatas e afirmadas para que o negro se reencontre consigo próprio.
Para Fanon, está aí uma armadilha que o movimento de negritude – e talvez o conjunto do movimento negro contemporâneo – corria o risco de ficar preso. Esta “essência negra” que se busca restaurar ou libertar, é na verdade uma invenção do racismo colonial, a serviço da desumanização do africano escravizado nas Américas e aceitá-la, é afirmar retoricamente a rejeição aos pressupostos coloniais, sem rejeitá-los de fato. (FANON, 2010:253)
Os seres humanos são o que fazem e como fazem, mas ter como objetivo último a preservação ou resgate cultural é inverter a ordem de prioridade do mundo, tomando o secundário como primário, valorizando o produto em detrimento do produtor. Esta postura, inicialmente legítima, poderia segundo Fanon levar os movimentos anti-racistas a alguns impasses perigosos, tais como: meter todos os negros no mesmo saco; busca por um passado glorioso em detrimento de uma realidade objetivamente desumanizadora; valorização acrítica e apaixonada de “tudo que for africano”, acompanhada por uma negação quase religiosa de tudo que for “ocidental”; aceitação do pressuposto racista de que a cultura negra é estática e fechada, portanto morta; valorização cultural tomada por central.
Para Fanon seria necessário ir além da – e não se limitar à – afirmação das especificidades culturais historicamente negadas, mas não se limitar a ela. Não é a cultura – historicamente negada – que deve resistir mas sim as pessoas que a produzem, a partir de seus referenciais que estão em constante transformação. É certo que o colonialismo nega ao colonizado a possibilidade de entificação de uma cultura autêntica, e por isto, a emancipação cultural, passa pela emancipação das pessoas que produzem e se produzem pela cultura. É o colonialismo em seu ato negador e reificador que atribui uma ausência de movimento histórico à cultura colonizada, engessando-a em catálogos antropológicos, vendo-as e tratando-as como elementos mortos…
Fanon no século XXI- Recuperar Fanon na atualidade é como afirma Wallerstein (2008:11), apostar numa “luta cujo desfecho é completamente incerto”. Muitos acontecimentos históricos posteriores à morte de Fanon nos levantam o questionamento de como ele analisaria ou confrontaria o colonialismo no século XXI? Os retrocessos políticos observados na Argélia com a islamização do Estado após a independência; as diversas e sucessivas ditaduras e decapitação de lideres anti-imperialistas nos países africanos recém-libertos; a queda do Muro de Berlin e o surgimento de uma geração para o qual a perspectiva de futuro está
ausente; as conquistas democráticas ( relativas) obtidas sem violência nos países subdesenvolvidos; e mesmo as drásticas alterações na sociedade moderna, provocada pela reestruturação produtiva e sua crescente financeirização da economia e readequação das fronteiras nacionais; o surgimento dos Novos Movimentos Sociais, suas viradas paradigmáticas e o próprio Neoliberalismo. Todos estes novos conflitos e contradições, impensáveis à época de Fanon levantam o questionamento se o autor estaria ultrapassado.
Do genocídio perpetrado pelo Estado de Israel aos palestinos à Erupção da Primavera Árabe; do alto e desproporcional índice de mortalidade materna das mulheres negras no Brasil, em relação às mulheres brancas às políticas higienistas de faxina urbana, tirando de circulação a força usuários de drogas e moradores de rua indigestos à especulação imobiliária de determinadas áreas; da persistência do racismo no Brasil ao atual e violento processo de extermínio vivenciado pela juventude negra no Brasil; da manutenção atualizada da “exploração do homem pelo homem”, reconfigurada e ressignificada não para se desfazer, mas para se intensificar… Em todos estes e outros problemas sociais presentes e latentes, colocam-nos diante de dilemas para os quais Frantz Fanon tenha muito a dizer.
Um afro abraço.
Claudia Vitalino.
fonte:ÁLVARES, Cláudia. “Teoria pós-colonial, Uma abordagem sintética” in Revista de Comunicação e Linguagens - Tendências da Cultura Contemporânea”, J. Bragança de Miranda e E. Prado Coelho (org.), Lisboa, Relógio de Água, 2000/APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África e a filosofia na cultura / Kwame Anthony Appiah: tradução Vera Ribeiro; revisão de tradução Fernando Rosa Ribeiro. – Rio de Janeiro: Contratempo, 1997/BHABHA, Homi K. O local da cultura / Homi K. Bhabha, tradução de Myriam Ávlila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Glauce Renata Gonsalves – Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. 395 p. Coleção Humanitas./BRAH, Avtar Difference, Diversity, Differentiation. In:. Cartographies of Diaspora: Contesting Indentities. Longon/New York, Routledge, 1996, capítulo 5,pp.95-127.
Frantz Omar Fanon nasceu em Julho em 20 de julho de 1925, no seio de uma família de classe média em Forte de France, Martinica, região francesa no Caribe. A Martinica ainda hoje é considerada um departamento ultramarino insular francês, e os seus habitantes – a grande maioria composta por negros que se sentem franceses – aprendiam nas escolas assimiladas, frequentadas por Fanon, que os “pais de sua Pátria” eram os Gauleses. Em 1944, quando a França estava invadida pela Alemanha nazista, Fanon alistou-se no exercito francês para lutar contra a invasão, mas lá no front de guerra, junto aos franceses brancos nascidos na metrópole, percebeu que a sua cor o impedia de ser visto como igual pelos seus “compatriotas”. Por mais que pensava, sentia ou desejasse o contrário, em face do Branco era visto apenas como Preto:
Subjetivamente, intelectualmente, o antilhano se comporta como um branco. Ora, ele é um preto. E só o perceberá quando estiver na Europa; e quando por lá alguém falar de preto, ele saberá que está se referindo tanto a ele quanto ao senegalês. (FANON, 2008:132)
"A percepção deste não-reconhecimento em face do branco francês exerceu grande influência em Fanon impactando os seus futuros escritos e prática política."
Os chamados estudos culturais ou pós-coloniais, embasados em uma perspectiva pós-estruturalista, têm retomado a leitura fanoniana a partir de uma leitura do colonialismo como “discurso” (ou paradigma) implícito à sociedade moderna, promotora de experiências racializadas. A contribuição central de Fanon,
segundo esta corrente, seria a ruptura com uma noção essencialista de identidade (hegeliana) rumo a uma noção aberta aos jogos fluidos – como contraposição a ontológicos – da identificação (HALL, 1996 e 2009; APPIAH, 1997 e ÁLVARES, 2000).
Outra linha de estudos um pouco diversa desta anterior é uma corrente originalmente surgida na América Latina, autodenominada pensamiento decolonial. Esta vertente, também conhecida como proyecto decolonial ou proyecto de la modernidad/colonialidad, visualiza em Fanon a possibilidade de analisar o
capitalismo (Sistema-Mundo) contemporâneo a partir de uma “perspectiva do Sul”. Pautadas em uma crítica ao pós−modernismo e o pós−estruturalismo, pelo que atribuem ser uma demasiada vinculação desses estudos à “matrizes de poder colonial”, esta corrente difere dos Estudos Pós-Coloniais ao divergir da ideia de superação do colonialismo que o termo “Pós” atribui.
Além disso, identifica nos estudos pós-coloniais uma subestimação dos aspectos econômicos da realidade social, em detrimento das dimensões culturais e subjetivas. Propõe nesse sentido, a noção de Heterarquia – relação entre as várias esferas sem uma atribuição prévia de hierarquia – entre economia, cultura, subjetividade e política (DUSSEL, 1977; MINGOLO 2000; MALDONADO-TORRES, 2005 e QUIJANO 1991, 1998, 2000).
Subjetivamente, intelectualmente, o antilhano se comporta como um branco. Ora, ele é um preto. E só o perceberá quando estiver na Europa; e quando por lá alguém falar de preto, ele saberá que está se referindo tanto a ele quanto ao senegalês. (FANON, 2008:132)
"A percepção deste não-reconhecimento em face do branco francês exerceu grande influência em Fanon impactando os seus futuros escritos e prática política."
Os chamados estudos culturais ou pós-coloniais, embasados em uma perspectiva pós-estruturalista, têm retomado a leitura fanoniana a partir de uma leitura do colonialismo como “discurso” (ou paradigma) implícito à sociedade moderna, promotora de experiências racializadas. A contribuição central de Fanon,
Outra linha de estudos um pouco diversa desta anterior é uma corrente originalmente surgida na América Latina, autodenominada pensamiento decolonial. Esta vertente, também conhecida como proyecto decolonial ou proyecto de la modernidad/colonialidad, visualiza em Fanon a possibilidade de analisar o
capitalismo (Sistema-Mundo) contemporâneo a partir de uma “perspectiva do Sul”. Pautadas em uma crítica ao pós−modernismo e o pós−estruturalismo, pelo que atribuem ser uma demasiada vinculação desses estudos à “matrizes de poder colonial”, esta corrente difere dos Estudos Pós-Coloniais ao divergir da ideia de superação do colonialismo que o termo “Pós” atribui.
Além disso, identifica nos estudos pós-coloniais uma subestimação dos aspectos econômicos da realidade social, em detrimento das dimensões culturais e subjetivas. Propõe nesse sentido, a noção de Heterarquia – relação entre as várias esferas sem uma atribuição prévia de hierarquia – entre economia, cultura, subjetividade e política (DUSSEL, 1977; MINGOLO 2000; MALDONADO-TORRES, 2005 e QUIJANO 1991, 1998, 2000).
A terceiro-mundismo e a luta de classes- Em dezembro de 1960, depois de circular por várias partes do continente africano fomentando a necessidade de expandir a guerra de libertação a outros países, no auge de sua atuação política, Fanon inicia a escrita de um livro que problematizaria a relação da revolução argelina com outros povos do Continente. No entanto, para a sua surpresa é diagnosticado é diagnosticado com leucemia, e percebe, mediante aos estágios a medicina se encontra nesta época, que lhe resta pouco tempo de via.
Inicia assim a escrita apressada do que sabidamente seria o seu livro, alterando o curso da escrita de forma a sintetizar seus acúmulos teóricos antes que seu tempo esgote. É neste contexto, que será escrito em questão de meses o famoso Les damnés de la terre. Enquanto escrevia o livro e revisava os trechos, chegou
a voar para Itália a fim de encontrar Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, para encomendar a Sartre o Prefácio do seu livro.
O livro trata, entre outros assuntos, dos conflitos implícitos ao colonialismo e à luta anticolonial. Alerta que a violência é parte fundante da sociedade colonial, estando presente em todas as suas expressões materiais e simbólicas. Constata ainda que a superação da lógica colonial só seria viável náquelas situações em que os colonizados empreendessem força material proporcionalmente capaz de abalas as forças sociais a ponto de fazer surgir um homem novo:
A descolonização se propõe a mudar a ordem do mundo, é, como se vê, um programa de desordem abosoluta(…)é um processo histórico: isto é, ela só pode ser compreendida, só tem inteligibilidade, só se torna translúcida para si mesma na exata medida em que discerne o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente antagônicas, que têm precisamente a sua origem nessa espécie de substancialização que a situação colonial excreta e alimenta. (…) a descolonização é verdadeiramente a criação de homens novos. Mas essa criação não recebe a sua legitimidade de nenhuma potência sobrenatural: a “coisa” colonizada se torna homem no processo mesmo pelo qual ela se liberta. (FANON, 2010:52-3)
Num diálogo constante com os movimentos internacionais ligados ao terceiromundismo, Frantz Fanon alerta que mesmo na África, o processo de revolução nacional não podem ignorar as especificidades de entificação da capitalismo, a composição das diferentes de classes sociais e seus interesses. Os países coloniais são economicamente mente mortal, tal como descreve Hegel em sua metáfora do senhorio e do servo, e que parecia impossível atrasados e subdesenvolvidos a partir da relação histórica com suas metrópoles sanguessugas. Esta realidade relega as colônias uma produção de bens primários voltados à exportação, uma classe operária insipiente, um campesinato palperizado e analfabeto e uma burguesia local subordinada à interesses externos.
Acrítica à negritude
"Os povos colonizados, não seguiram inertes à colonização e buscaram desenvolver estratégias diversas de resistência e emancipação. É o Branco que cria o Negro, mas é, por outro lado “o negro que cria a negritude” (FANON, 1968:20), afirmando-se na luta por um reconhecimento objetivo".
A pesar de reconhecer a legitimidade histórica da luta anti-racista e dos movimentos de afirmação cultural (FANON, 2010:244), na medida em que promovem o questionamento dos valores racistas europeus, Fano
alerta que muitas vezes a luta anti-racista – classificada por ele como “racismo anti-racista” – ou de afirmação cultural não consegue superar os limites e contradições históricas que a forjaram.
O “conceito de negritude” admite, “é a antítese afetiva, senão lógica, desse insulto que o homem branco fazia á humanidade”. E completa: “Essa negritude lançada contra o desprezo do branco se revelou, em certos setores, como o único fator capaz de derrubar interdições e maldições” (FANON, 2010:246). No entanto, essa contraposição, historicamente necessária, levou o movimento a um impasse: “ à afirmação incondicional da cultura europeia sucedeu a afirmação incondicional da cultura africana” (Idem).
Se o colonialismo definiu como essencialmente negro a emoção, o corpo, a virilidade, ludicidade, mas, sobretudo, classificou hierarquicamente estes elementos como inferiores, frente à não menos fetichizada (e ilusória) imagem criada para o Europeu – Razão, civilização, cultura, universalidade -, o movimento de negritude, sem romper com estes fetichismos, apenas inverteu os polos da hierarquia, passando a considerar como positivo àquilo que o colonialismo classificou como inferior.
Assim a inocência, musicalidade, o ritmo “nato” do africano, passam a ser afirmados pelos movimentos anti-racistas como elementos essencialmente africanos, mas agora, vistos como superiores e desejáveis frente à frieza tecnicista ocidental (SENGHOR, 1939). As “almas da gente negra” passam a ser classificadas como essências metafísicas, ou no mínimo históricas, que precisariam ser resgatas e afirmadas para que o negro se reencontre consigo próprio.
Para Fanon, está aí uma armadilha que o movimento de negritude – e talvez o conjunto do movimento negro contemporâneo – corria o risco de ficar preso. Esta “essência negra” que se busca restaurar ou libertar, é na verdade uma invenção do racismo colonial, a serviço da desumanização do africano escravizado nas Américas e aceitá-la, é afirmar retoricamente a rejeição aos pressupostos coloniais, sem rejeitá-los de fato. (FANON, 2010:253)
Os seres humanos são o que fazem e como fazem, mas ter como objetivo último a preservação ou resgate cultural é inverter a ordem de prioridade do mundo, tomando o secundário como primário, valorizando o produto em detrimento do produtor. Esta postura, inicialmente legítima, poderia segundo Fanon levar os movimentos anti-racistas a alguns impasses perigosos, tais como: meter todos os negros no mesmo saco; busca por um passado glorioso em detrimento de uma realidade objetivamente desumanizadora; valorização acrítica e apaixonada de “tudo que for africano”, acompanhada por uma negação quase religiosa de tudo que for “ocidental”; aceitação do pressuposto racista de que a cultura negra é estática e fechada, portanto morta; valorização cultural tomada por central.
Para Fanon seria necessário ir além da – e não se limitar à – afirmação das especificidades culturais historicamente negadas, mas não se limitar a ela. Não é a cultura – historicamente negada – que deve resistir mas sim as pessoas que a produzem, a partir de seus referenciais que estão em constante transformação. É certo que o colonialismo nega ao colonizado a possibilidade de entificação de uma cultura autêntica, e por isto, a emancipação cultural, passa pela emancipação das pessoas que produzem e se produzem pela cultura. É o colonialismo em seu ato negador e reificador que atribui uma ausência de movimento histórico à cultura colonizada, engessando-a em catálogos antropológicos, vendo-as e tratando-as como elementos mortos…
Fanon no século XXI- Recuperar Fanon na atualidade é como afirma Wallerstein (2008:11), apostar numa “luta cujo desfecho é completamente incerto”. Muitos acontecimentos históricos posteriores à morte de Fanon nos levantam o questionamento de como ele analisaria ou confrontaria o colonialismo no século XXI? Os retrocessos políticos observados na Argélia com a islamização do Estado após a independência; as diversas e sucessivas ditaduras e decapitação de lideres anti-imperialistas nos países africanos recém-libertos; a queda do Muro de Berlin e o surgimento de uma geração para o qual a perspectiva de futuro está
ausente; as conquistas democráticas ( relativas) obtidas sem violência nos países subdesenvolvidos; e mesmo as drásticas alterações na sociedade moderna, provocada pela reestruturação produtiva e sua crescente financeirização da economia e readequação das fronteiras nacionais; o surgimento dos Novos Movimentos Sociais, suas viradas paradigmáticas e o próprio Neoliberalismo. Todos estes novos conflitos e contradições, impensáveis à época de Fanon levantam o questionamento se o autor estaria ultrapassado.
Do genocídio perpetrado pelo Estado de Israel aos palestinos à Erupção da Primavera Árabe; do alto e desproporcional índice de mortalidade materna das mulheres negras no Brasil, em relação às mulheres brancas às políticas higienistas de faxina urbana, tirando de circulação a força usuários de drogas e moradores de rua indigestos à especulação imobiliária de determinadas áreas; da persistência do racismo no Brasil ao atual e violento processo de extermínio vivenciado pela juventude negra no Brasil; da manutenção atualizada da “exploração do homem pelo homem”, reconfigurada e ressignificada não para se desfazer, mas para se intensificar… Em todos estes e outros problemas sociais presentes e latentes, colocam-nos diante de dilemas para os quais Frantz Fanon tenha muito a dizer.
Um afro abraço.
Claudia Vitalino.
fonte:ÁLVARES, Cláudia. “Teoria pós-colonial, Uma abordagem sintética” in Revista de Comunicação e Linguagens - Tendências da Cultura Contemporânea”, J. Bragança de Miranda e E. Prado Coelho (org.), Lisboa, Relógio de Água, 2000/APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África e a filosofia na cultura / Kwame Anthony Appiah: tradução Vera Ribeiro; revisão de tradução Fernando Rosa Ribeiro. – Rio de Janeiro: Contratempo, 1997/BHABHA, Homi K. O local da cultura / Homi K. Bhabha, tradução de Myriam Ávlila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Glauce Renata Gonsalves – Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. 395 p. Coleção Humanitas./BRAH, Avtar Difference, Diversity, Differentiation. In:. Cartographies of Diaspora: Contesting Indentities. Longon/New York, Routledge, 1996, capítulo 5,pp.95-127.
Nenhum comentário:
Postar um comentário